Na sua longa vida política de mais de 40 anos, António Costa, de 59, já viveu dias bastante complicados - para não dizer profundamente dolorosos.
Ninguém esquece - começando pelo próprio - aquele 17 de Junho de 2017, quando um incêndio em Pedrógão, que alastrou a vários concelhos vizinhos, matou 65 pessoas, a maior parte das quais (47) apanhadas dentro de carros a fugir na Estrada Nacional 236.
Ou depois, no mesmo ano, na madrugada de 16 de Outubro, o drama de ver a tragédia de Pedrógão a repetir-se ponto por ponto - incêndios ciclópicos e caos na Protecção Civil - com 45 pessoas a morrerem vítimas de dezenas de incêndios em 27 concelhos da região centro (sobretudo os distritos de Viseu, Guarda, Castelo Branco, Aveiro e Leiria)
Costa também não se esquece daquele 22 de Maio de 2003, uma quinta-feira, em que um jovem juiz de instrução, Rui Teixeira, foi ao Parlamento para interrogar, e depois prender preventivamente, um deputado do PS, sob a horrorosa suspeita de pedofilia - coisa nunca vista na democracia e incomparavelmente pior do que uma suspeita de corrupção ou outra do género.
Na altura líder parlamentar do PS, Costa já há dias que sabia que a tempestade vinha a caminho e tentou por todos os meios, junto dos seus amigos do sector da justiça, livrar Pedroso da prisão - mas em vão. (Pedroso esteve preso preventivamente durante quatro meses e depois foi libertado. Nunca foi acusado de nada.)
Igualmente inesquecível, no pior sentido, foi aquele 9 de Junho de 2004, uma quarta-feira, quando, sendo número dois na lista do PS ao Parlamento Europeu, viu o número um da lista, António Sousa Franco, morrer vítima de ataque cardíaco, depois de uma muitíssimo agitada acção de campanha na lota de Matosinhos, onde o cabeça-de-lista serviu de arma de arremesso numa guerra de facções que estalara no PS-Porto.
A longa vida política de Costa já incluiu dias muito difíceis - para não falar dos de derrota eleitoral, como a de 5 de Junho de 2011, face à coligação PSD-CDS liderada por Pedro Passos Coelho. E ontem, quinta-feira, foi mais um deles, um daqueles que o PM nunca esquecerá.
Não ligar aos avisos
Ignorando conselhos amigos, Costa aceitou, mais uma vez - como já fizera em 2016, sendo portanto já chefe do governo - integrar a comissão de honra de mais uma recandidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica. A notícia, avançada pelo
Expresso no sábado passado, transformou-o num saco de pancada durante toda a semana.
Na cúpula do PS e do governo foram bem percebidos os sinais de ruptura na confiança do país no PM por causa desta decisão - só faltando agora saber se os efeitos serão de curto, médio ou longo prazo. Para isso contribuíram muito
as críticas que ouviu do Presidente da República.
A notícia caiu como uma bomba. Num comentário nas redes sociais, o comentador político do DN Pedro Marques Lopes - adepto, note-se, do FC Porto - sintetizou o tom geral das críticas: "A triste figura que Costa fez em aceitar estar na comissão de honra de Vieira só é excedida pela tristíssima de ser corrido pelo presidente do Benfica."
O dano atingiu a própria base política de apoio ao primeiro-ministro. Francisco Seixas da Costa, embaixador aposentado próximo do PS (foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus no tempo de Guterres), verbalizou, também nas redes sociais, a sua perplexidade.
Algures durante a semana, para tentar atirar o "VieiraGate" para segundo plano mediático, Costa acelerou uma remodelação governamental de cinco secretários de Estado que já vinha a planear há algum tempo.
A pedido expresso da ministra da Saúde, a remodelação incluiu a (até ontem) secretária de Estado adjunta e da Saúde, Jamila Madeira - ex-líder da JS e um nome de peso no aparelho do PS (no Algarve). As duas nunca se deram bem - e Temido foi cavalgando o facto de Jamila ter chegado ao ministério sem experiência no setor.
Quem conhece bem Jamila Madeira já antecipava na quarta-feira que a ex-líder da JS, tendo saído contrariada, não se deixaria ficar. E assim foi. Numa declaração à Lusa pelas 13.30 - pouco antes, portanto, do comunicado de Vieira -, Jamila - agora de regresso ao Parlamento, confirmava que tinha sido empurrada borda fora.
"Após este quase um ano de mandato nas funções de secretária de Estado adjunta e da Saúde, gostava de dizer que é com orgulho que saio num momento em que podemos dizer que terminou o mito de o SNS ser um buraco sem fundo."
Jamila, porém, não se ficou por aqui. Foi à cerimónia a Belém onde se concretizou a sua substituição (pelo seu camarada de partido António Lacerda Sales, que agora passou de número 3 do Ministério da Saúde para n.º 2) e à saída fez uma declaração aos jornalistas - sem responder a perguntas - onde puxou para si os galões de um suposto saneamento financeiro do SNS.
"Após este quase um ano de mandato nas funções de secretária de Estado adjunta e da Saúde, gostava de dizer que é com orgulho que saio num momento em que podemos dizer que terminou o mito de o SNS ser um buraco sem fundo", afirmou.
Acrescentando que, "pela primeira vez", a meio de Setembro, "os números da conta do SNS demonstram a sua sustentabilidade [financeira], algo tão importante para os portugueses".
"Esse resultado só é possível com o investimento colocado pelo governo liderado pelo primeiro-ministro [António Costa] e com uma gestão criteriosa que foi desenvolvida durante este mandato", concluiu. Deixando, pelo meio, um aviso: "Volto para a Assembleia da República. O meu papel na vida política e partidária continua."
Pandemia
a crescer
O pior de tudo, porém, para este verdadeiro dia horribilis do
primeiro-ministro, foram os números da pandemia.
Foi o pior registo desde 10 de abril (quando o país estava todo em quarentena e subordinado às regras apertadas do estado de emergência): 770 novos infectados e mais dez mortos (passando assim o número de vítimas mortais para 1888).
Uma fonte do gabinete do PM disse à Lusa que a reunião, que se iniciará às 11.30, na residência oficial do chefe do governo, surge na sequência do "contínuo aumento" de novos casos diários de infecção e pela necessidade de "reforçar a sensibilização dos cidadãos para a adopção de medidas de prevenção e de segurança contra a covid-19".
Do gabinete de crise, que se reuniu pela última vez em 29 de Junho, em São Bento, fazem parte os ministros Pedro Siza Vieira (Economia e da Transição Digital), Augusto Santos Silva (Negócios Estrangeiros), Mariana Vieira da Silva (Presidência), João Leão (Finanças), João Gomes Cravinho (Defesa), Eduardo Cabrita (Administração Interna), Ana Mendes Godinho (Trabalho, Solidariedade e Segurança Social), Tiago Brandão Rodrigues (Educação), Marta Temido (Saúde) e Pedro Nuno Santos (Infraestruturas e Habitação).
O Presidente da República já tinha prometido que queria falar com o PM sobre a questão benfiquista. A reunião entre os dois começou pouco depois das 18.00 - logo a seguir à tomada de posse dos novos secretários de Estado. Prolongou-se durante mais de uma hora, terminando, como habitualmente, sem declarações no fim. Como é norma sempre que vai a Belém para estas reuniões semanais, Costa entrou e saiu do palácio por uma porta lateral, fora portanto dos olhares dos jornalistas. Durante o dia todo, aliás, não fez uma única declaração pública.
O facto, porém, é que quando Costa chegou a Belém já não era da comissão de honra de Vieira - este havia-o "despedido". Não se sabe se o assunto chegou ou não a ser abordado com o Presidente. O que se sabe é que a pandemia está a crescer e terão de ser decretadas novas medidas - por exemplo:
uma delegada de saúde pediu que o próximo 13 de Outubro em Fátima se faça sem peregrinos, como foi o 13 de Maio. Dificilmente, portanto, deixou de ser o tema principal da conversa.