quarta-feira, 31 de maio de 2023

Estado Novo Ascensão e queda de Marcello Caetano (e do regime)

O último equívoco sobre o salazarismo foi criado pelo “marcelismo”, entre 1968 e 1974. Marcello Caetano era um dos mais antigos colaboradores de Salazar. Entre 1955 e 1958, enquanto ministro da Presidência, foi o seu número dois. Mas, em privado, não escondia as maiores dúvidas acerca da demora de Salazar em “institucionalizar o Estado Novo”, isto é, em fazer do regime algo mais do que um estado de emergência, em que “as leis nada valem, a tudo se sobrepondo o arbítrio dos governantes”.
Depois da sua saída do governo, em 1958, muitos salazaristas passaram a ver Marcello Caetano como uma espécie de chefe da “oposição interna”. Em 1961, constou que os altos comandos militares haviam pensado em Marcello para chefe de governo. Em Outubro de 1962, durante uma reunião do chamado Conselho Ultramarino, correram umas folhas dactilografadas em papel timbrado de Marcello Caetano que deu azo ao rumor de que admitia uma “federação” para resolver o problema ultramarino. Para os defensores da “integridade da pátria”, era uma heresia. Por isso, Salazar viu-se adoptado como herói por uma “direita nacionalista” que então, tal como em França, fez da manutenção do ultramar a sua última causa. Ao mesmo tempo, Marcello começou a suscitar as maiores expectativas “liberais”.
Salazar, no entanto, nunca recusou reformas. Em 1961-1962, deu início a um processo de “descolonização”, apoiando o ministro do Ultramar Adriano Moreira na abolição dos aspectos mais brutais do colonialismo, como o Estatuto dos Indígenas, o Código de Trabalho Rural e as “culturas obrigatórias”. Mesmo a opção de defesa do ultramar nunca esteve acima de reconsideração. Quando Franco Nogueira, em 1962, lhe disse que só ele, Salazar, estava em condições de fazer uma “viragem” da política ultramarina, como o general De Gaulle no caso da Argélia francesa, Salazar reconheceu implicitamente que sim. É verdade que acrescentou logo que ele próprio não a faria. Mas admitiu que outro a fizesse: “Terá é de cavar o seu crédito político como eu o fiz”.
Salazar não queria facilitar a vida a quem tencionasse disputar-lhe o lugar. No entanto, não lhe escapava a vantagem de mudar. Na sua última remodelação ministerial, no Verão de 1968, fez um governo de notórios “marcelistas”. Os comunistas chamaram depois ao marcelismo “o salazarismo sem Salazar”. Teria sido mais correcto dizer que o salazarismo, nos seus últimos meses, é que tinha sido o “marcelismo sem Marcello”. Estaria Salazar a preparar alguma “evolução”? Franco Nogueira ficou a desconfiar que sim. Esta impressão nunca se tornou geral porque, depois de 1968, os críticos do novo Presidente do Conselho, para melhor o denegrirem, tenderam a contrastá-lo com Salazar: para fazerem Marcello parecer hesitante e contraditório, inventaram um Salazar inabalável e inflexível, isto é, completamente mítico.
Quando Marcello Caetano sucedeu a Salazar, estava-se no ano da revolta estudantil de Paris e da Primavera de Praga. Devido às reservas e resistências da elite salazarista, a começar pelo presidente da república, Marcello convenceu-se sinceramente que tinha sido levado ao poder “por uma onda irreprimível e irresistível de opinião”. Não sentiu por isso que vinha administrar a agonia do salazarismo, mas começar algo de novo. E de facto, provou que em Portugal a ditadura mantinha a iniciativa.
Saiu à rua e iniciou umas célebres “conversas em família” na RTP. Deu às mulheres os mesmos direitos políticos dos homens. Propôs-se refundar o regime como “Estado social” – uma expressão que em Portugal começou a ser usada por ele. Em 1960, havia 56 mil pensionistas; em 1974, 701 mil. Com o ministro Baltasar Rebelo de Sousa implantou a rede de trezentos centros de saúde que seria depois a base real do Serviço Nacional de Saúde de 1978. Com o ministro Veiga Simão, começou a “democratizar o ensino” (foi esta a expressão oficialmente usada): os alunos matriculados no 5º e 6º anos triplicaram.
Nunca, porém, lhe ocorreu dar às oposições de esquerda a possibilidade de disputar o poder em pé de igualdade. Aquilo que o preocupou foi outra coisa: recuperar gente que estava de fora ou mesmo contra o regime. O ponto é que quase todos aceitaram falar com ele ou com os seus emissários. Marcello renovou assim a classe política: 65% dos deputados eleitos em 1969 eram estreantes. É verdade que este êxito veio à custa de equívocos. No caso da “ala liberal” da Assembleia Nacional, Marcello julgou que o vinham apoiar, e os “liberais” convenceram-se que ele iria fazer o que eles queriam – a democratização do regime. Mas o salazarismo não fora menos equívoco.
O que é que correu mal? Porque é que ditadura salazarista conseguiu organizar uma sucessão interna em 1968, mas já não conseguiu, ao contrário do franquismo em Espanha em 1976-1977, enquadrar uma transição democrática? Valerá a pena lembrar que Marcello Caetano nunca foi completamente claro a propósito da democracia pluralista. Frequentemente se lhe referiu com menosprezo, como uma forma desadequada aos tempos. Mas acima de tudo, no seu Depoimento, de 1974, Marcello queixou-se da guerra em África. Salazar ter-lhe-ia deixado a “mais difícil herança da História de Portugal”.
Mesmo aqui, porém, Marcello encontrara espaço de manobra. Salazar conseguira manter a guerra barata e rotineira, com uma justificação simples: a defesa do território pátrio. O que aconteceu é que Marcello não acreditou na viabilidade de um esforço militar indefinido. Projectou uma “autonomia progressiva”, consentiu contactos com as guerrilhas e terá mesmo previsto opções mais dramáticas (a independência de Angola).
O problema não terá estado aí, mas na necessidade de ficar em posição de força para conduzir o processo. Isso levou-o a procurar golpes decisivos no terreno. Foi aí que perdeu o controle da situação. Marcello deixou a guerra evoluir para uma sucessão de grandes operações, dirigida por comandantes com poderes inéditos, como os generais Spínola na Guiné, Kaúlza de Arriaga em Moçambique e Costa Gomes em Angola. Mas ao suscitar a possibilidade de um fim próximo da guerra, acabou por a tornar insuportável. Pior: pela primeira vez desde a I Guerra Mundial, Portugal tinha comandantes militares carismáticos, cheios de aspirações políticas. Em 1972, Spínola e Kaúlza estavam ansiosos por suceder a Tomás na presidência da república. Na Guiné, os colaboradores de Spínola já o viam como “o nosso De Gaulle”. Frustrados, os De Gaulles começaram a conspirar, dando cobertura à insubordinação dos oficiais mais jovens.
A ditadura salazarista terminou assim num fracasso sem retorno. Depois de 1910, continuou a haver monárquicos e depois de 1926, republicanos. Mas nenhum movimento político reivindicou, desde 1974, as ideias de Salazar. Nunca houve em Portugal o equivalente do Movimento Social Italiano de Giorgio Almirante, ou da Fuerza Nueva de Blas Piñar, em Espanha. A presença do salazarismo passou a depender de uma extrema-esquerda que nunca abandonou o velho costume soviético de tratar como “fascistas” todos os que não são comunistas. Em 2007, a vitória de Salazar num concurso televisivo foi mais um sinal de iconoclastia do que de saudosismo. Valem-lhe os antifascistas para o conservar ameaçadoramente “vivo”. Terá ele imaginado este fiasco final? Nos seus últimos anos de vida, entre 1968 e 1970, não lhe disseram que fora substituído no governo. Mas, como notou Adriano Moreira, ele também nunca perguntou.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Estado Novo A “vantagem” política da guerra do Ultramar

Geralmente, aceita-se que o Estado Novo correspondeu ao ar do tempo na década de 1930 e no começo da década de 1940, durante a II Guerra Mundial. O clímax dessa adequação política e estética teria estado na exposição e congressos do “Mundo Português” de 1940. A partir de 1945, porém, tudo teria mudado. Os vinte e três anos que Salazar governou após 1945 teriam sido uma descida. O seu biógrafo oficial e ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira, fala de “resistência”. Salazar teria apenas “aguentado”, isto é, adiado um fim pré-determinado.
Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, a esquerda mostrou-se inconformada na oposição. Depois da morte de Carmona em 1951, os comandos das forças armadas envolveram-se outra vez nas intrigas do regime. A partir de 1958, passou a haver oposição significativa à ditadura entre correntes de opinião outrora fiéis, como os monárquicos e os católicos. No país, a transformação económica e social de que o regime precisou para se legitimar fez ao mesmo tempo desaparecer a velha sociedade rural, onde era possível confiar na Igreja Católica para disciplinar o povo e no comunismo para assustar a classe média.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) desautorizou o clero mais conservador. Uma população escolar em expansão (o número de estudantes universitários duplicou então) protagonizou uma ruptura geracional de valores.
Na década de 1960, 75% da população já tinha nascido depois da subida de Salazar ao poder. A comparação que para as novas gerações fazia sentido não era com os regimes portugueses anteriores, mas com outros regimes europeus – pouco lhes interessava que todos os números de desenvolvimento fossem muito melhores do que os de 1926, como de facto eram; o que lhes importava é que ainda não eram tão bons como os da França ou da Alemanha ocidental. O crescimento da inflação, depois de 1965, prenunciou desequilíbrios.
Mas na década de 1960, no meio de um mundo em mudança, Salazar soube fazer a ditadura enquadrar dois projectos capazes de suscitar adesão: um foi o do desenvolvimento do país, demonstrado pelas taxas de crescimento económico mais altas da sua história e pela expansão também sem precedentes de instituições de inclusão e promoção, como a Segurança Social, os cuidados de saúde e a escola; o outro foi a opção de manter a administração portuguesa em África, quando as outras potências europeias retiravam. O homem creditado com ter poupado o país à II Guerra Mundial envolveu-o depois de 1961 no maior esforço militar de uma nação ocidental desde 1945.
A “defesa do Ultramar” foi a razão que frequentemente Salazar deu em privado e em público para se manter no poder durante os anos 1960. Foi também a razão depois dada para cancelar a perspectiva de uma “normalização” do regime à maneira ocidental. Justificou, por exemplo, as restrições à vida pública, como a censura à imprensa. Por outro lado, congelou a política.
Em Abril de 1961, Salazar pôde usar o “Angola, rapidamente e em força” para pôr termo às intrigas na elite do regime. A oposição dividiu-se. Os republicanos estavam tão ou mais ligados ao Ultramar do que os salazaristas. O chefe da oposição em 1949 tinha sido o general Norton de Matos, o grande herói da colonização de África no século XX. Provavelmente, se a oposição tivesse ganho em 1945, talvez também tivesse havido uma guerra para defesa de Angola em 196.
Muitos republicanos fizeram questão, pela primeira vez em trinta e cinco anos, de aplaudir o regime. Mesmo aqueles que não aplaudiram deixaram de ter a mesma pressa em derrubar Salazar. Álvaro Cunhal notou que havia na oposição quem não desejasse ir para o poder antes de o Ultramar ter sido perdido. Ninguém queria ficar com essa responsabilidade. Por isso, a defesa do Ultramar funcionou, em meados da década de 1960, como o seguro de vida do salazarismo.
A ditadura salazarista explorou então uma mística histórica, assente na presumida actualidade da expansão ultramarina, o que levou Eduardo Lourenço a admitir que “o Portugal de Salazar foi o último que se assumiu e viveu como um destino”. Mas há aqui um velho equívoco. Salazar nunca se viu a si próprio como um sobrevivente do velho Portugal conquistador, resistindo aos “ventos da história” contra toda a lógica e interesses. Como explicou a Franco Nogueira, a defesa do Ultramar não era uma questão de “fé”, mas de conveniências e de vantagens. A resistência em África era possível, porque os independentistas nunca tiveram força para sujeitar os portugueses a uma guerra equivalente à da Argélia ou do Vietname, e porque a pressão diplomática também nunca foi decisiva.
Finalmente, a prosperidade de Angola e de Moçambique, que atraiu milhares de portugueses, pareceu justificar a sua defesa. Na metrópole, o crescimento económico suscitado pela integração na EFTA (1959) e pelo turismo viabilizou o esforço militar. Mesmo assim, Salazar não sabia quanto tempo podiam durar: “quando encontrarmos um obstáculo intransponível, então reconsideraremos”. Mas “isto é só para nós. Para a opinião pública, para o país, só temos certezas e confiança”. A sua inflexibilidade nunca foi mais do que um mito que lhe conveio criar.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Estado Novo 25 de Abril: pela democracia ou pela paz?

A revolução de 25 de Abril de 1974 pôs termo a uma velha ditadura, precisamente quando começava a chamada “grande inflação” dos anos 1970, depois da crise do petróleo de 1973. Mas as principais motivações do golpe não tiveram que ver com a natureza ditatorial do governo de Portugal ou com a subida dos preços do petróleo, mas com os problemas decorrentes da natureza do estado português enquanto agregação de territórios em vários continentes.
Desde a década de 1950 que tanto os EUA como a União Soviética contestavam os impérios adquiridos em África e na Ásia pelos estados da Europa ocidental. Ao contrário de outros impérios coloniais, como a própria União Soviética ou a China comunista, os impérios ocidentais eram facilmente reconhecíveis por serem territorialmente descontínuos: eram, em geral, ultramarinos. O “ultramar português” estava nesse caso.
A 15 de Dezembro de 1960, a assembleia geral das Nações Unidas aprovou, por 68 votos a favor, 6 contra e 17 abstenções (entre elas a dos EUA), a resolução 1542 que definia como “territórios não-autónomos” todos os territórios ultramarinos portugueses. O governo português, que entrara na ONU em 1955, protestou que tinha sido violada a Carta da organização, a qual estipulava que cabia a cada Estado membro declarar quais dos seus territórios se poderiam classificar como não-autónomos. Poucos meses depois, vários partidos independentistas clandestinos, com base no estrangeiro, iniciavam uma sublevação armada no norte de Angola.
Em 1974, a guerra contra os partidos separatistas armados no ultramar durava havia treze anos. Em 1973, cerca de noventa mil jovens oriundos da metrópole cumpriam serviço militar em África – o equivalente a um por cento da população metropolitana. Não admira que, em 1973, uma sondagem à opinião revelasse que, quando perguntados acerca de qual era “o objectivo político mais importante para os próximos anos”, 53% dos portugueses inquiridos tivessem respondido “que haja paz”, e apenas 3,7% “que exista democracia”. É pela guerra em África que precisa começar quem quiser perceber o golpe de 25 de Abril de 1974.
As culpas da guerra
As campanhas portuguesas em África entre 1961 e 1974 representaram o maior esforço militar alguma vez feito por um país europeu depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Cerca de oitocentos mil portugueses europeus prestaram serviço militar no ultramar. Perto de seis mil morreram lá, cerca de três mil dos quais em combate. Ao seu lado, estiveram milhares de africanos, então portugueses.
Em 1974, quase metade dos cerca de 150 mil homens do exército português em África eram recrutas locais. Sobre tudo isto, há décadas que em Portugal se repetem ideias feitas como se fossem orações. Para uns, tudo não teria passado de um capricho suicida, arbitrariamente imposto aos portugueses pelo delírio imperial de um ditador. Para outros, tratou-se da malograda defesa de um idílio tropical, contra a intromissão subversiva de potência estrangeiras. É tempo de mudar os termos do debate.
Foi a guerra o simples resultado da natureza do regime político português em 1961, ou da idiossincrasia do seu chefe? Não. Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961 senão enviar tropas para proteger as populações ameaçadas de limpeza étnica no noroeste de Angola. Quando o corpo expedicionário chegou a Angola, os seguidores do partido armado clandestino chamado União dos Povos de Angola tinham chacinado milhares de pessoas, entre as quais cerca de mil brancos, naquele que foi o maior massacre de civis europeus em África no século XX.
Não se tratou de um excesso acidental. Os chefes da UPA eram amigos de Frantz Fanon. Fanon, uma das coqueluches da esquerda revolucionária mundial, recomendava a violência contra os “colonos” como forma de resolver o problema do “colonialismo”: segundo disse num dos seus momentos mais líricos, “para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono”.
É fácil atribuir todas as culpas à “colonização” portuguesa. Mas não era possível, em 1961, apagar a história dos séculos anteriores. Dever-se-ia ter negociado com os discípulos de Fanon, para os demover do recurso à violência? Tem-se falado muito da suposta intransigência de Salazar, mas pouco da dos independentistas. Nunca quiseram negociar com o governo português a não ser a data da transferência do poder. Como se viu em 1974-1975, jamais lhes passou pela cabeça disputarem eleições. Ao contrário do que insinuava a propaganda salazarista, nem todos eram comunistas. Mas nenhum deles era um simples independentista. Quase sem excepções, eram revolucionários. Tinham sido educados no Ocidente ou segundo processos ocidentais, e todos eles aderiram a uma espécie de teoria da substituição, encarando os novos Estados independentes da África e da Ásia como os sucessores dos Estados europeus, agora supostamente em decadência, na missão de redimir o mundo.
As independências faziam sentido, para eles, como a oportunidade de fazer um “homem novo”. Neste quadro, a guerra não lhes repugnava. Concebiam a guerra segundo a doutrina do movimento comunista internacional, não como a procura de decisões no campo de batalha, mas como uma “guerra prolongada”, de socialização política das populações. Era através da “luta” que esperavam “forjar a nova nação”.
Além disso, o recurso à violência tinha vantagens políticas óbvias, a partir do momento em que começara a ser admitido como uma fonte de legitimidade política. Foi graças à guerra que os chefes independentistas, nunca eleitos por ninguém, obtiveram da Organização da Unidade Africana (em 1964-1965) e da Organização das Nações Unidas (em 1972) o reconhecimento do estatuto oficial de “representantes legítimos” da população. Assim, nunca teria sido fácil demovê-los da “luta armada”. A não ser que se lhes tivesse oferecido logo todo o poder, como acabaria por acontecer em 1974.
Rui Ramos, Observador

domingo, 28 de maio de 2023

Estado Novo O grande equilíbrio dos pequenos poderes

Até agora, ao longo das últimas cinco newsletters, examinámos duas questões: a duração do Estado Novo e o seu sentido político. Vimos como Salazar conseguiu, nos dois casos, inserir o Estado Novo na sociedade portuguesa e na cultura política do seu tempo. Isso garantiu o sucesso da ditadura. Mas o sucesso de uma ditadura não é necessariamente o sucesso de um ditador. No Verão de 1926, a Ditadura Militar portuguesa passou rapidamente por vários “ditadores”: o general Gomes da Costa derrubou o almirante Mendes Cabeças, e foi por sua vez derrubado pelo general Carmona.
Houve ditaduras que puseram em causa o seu líder de um modo decisivo: foi o caso do Grande Conselho do Fascismo em Itália, em Julho de 1943, ao votar contra Mussolini e assim precipitar a sua demissão pelo Rei, e foi também o caso do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, em Outubro de 1964, ao impor a resignação de Nikita Khrushchev. Não basta uma ditadura para manter um ditador.
Salazar nunca foi dispensado de fazer política para se manter no poder, isto é, de congregar aliados e de dividir adversários. A historiografia reduziu a história política do Estado Novo ao confronto entre os salazaristas e as oposições. Mas a luta política dentro do salazarismo é pelo menos tão fundamental para perceber o Estado Novo.
O Estado Novo, enquanto regime, nunca perdeu o ar de algo inacabado e impreciso, próximo do “começo” – e, portanto, também de um possível fim. Ao longo de décadas, foi mais uma “situação” (como aliás se dizia), um governo, do que propriamente um regime.
O corporativismo, por exemplo, nunca saiu completamente do papel. Nos anos 1930, foi lançado a partir de uma subsecretaria de Estado, e não de um ministério. A Câmara Corporativa foi sempre consultiva. Tudo, de facto, se resumia à “chefia personalizada” de Salazar, que fundamentalmente conservou a estrutura de poder inicial: uma ditadura militar com um chefe de Governo civil que dirigia directamente a censura à imprensa e a polícia política.
Ao passar pela direcção da União Nacional na década de 1950, Marcello Caetano descobriu que o Governo era “a única realidade política activa, apoiado no aparelho administrativo e nas polícias” (a administração expandir-se-ia de 30-40 mil funcionários na década de 1930 para cerca de 200 mil na década de 1960). Adriano Moreira viu o Estado Novo como um edifício de presidências, conselhos, assembleias e outros “órgãos que não tinham funcionado nunca com responsabilidade própria, e apenas estavam apontados na Constituição”.
O que Marcello Caetano e Adriano Moreira diziam era que havia um poder salazarista, mas que esse poder não correspondia a instituições políticas autónomas, que tivessem uma base própria e fossem capazes de funcionar por si próprias. Em 1951, no congresso da União Nacional em Coimbra, Caetano perguntou abertamente: “O Estado Novo será verdadeiramente um regime, ou não será mais do que o conjunto das condições adequadas ao exercício do Poder por um homem de excepcional capacidade governativa?”
A resposta era óbvia. Salazar soube usar as máximas da Antiguidade clássica: o tirano podia ser suportável se desse ideia de que não dominava por interesse pessoal. O “bom tirano” era, em primeiro lugar, um tirano sobre si próprio. E foi assim que Salazar se apresentou – sacrificado ao bem público, privado de ócios, de prazeres, de liberdade…
Nunca ninguém contestou a sua honestidade pessoal. O velho grão-mestre da Maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima (falecido em Dezembro de 1928), ainda teve tempo de o admirar desse ponto de vista: “Salazar é um homem profundamente honesto”.
A todos os seus visitantes, Salazar impressionou pelo seu conhecimento dos dossiers e pela sua prudência. Durante a II Guerra Mundial, um agente inglês descreveu-o assim: “é como um homem que, tendo de transportar cargas pesadas através de uma ponte frágil, sabe o que a ponte pode aguentar e carrega o seu carro em conformidade”.
Ouvia muita gente. Mas não gostava de grandes reuniões, preferindo falar com os seus colaboradores um a um. Aproveitou esse hábito intimista para deixar a todos a impressão de que estava com eles. Quando discursava em público, tinha o cuidado de ser abstracto e alusivo, para permitir várias interpretações. Evitou sempre definir-se claramente em relação às questões que sabia poderem fracturar os salazaristas (por exemplo, a opção entre república e monarquia).
Por debaixo disto, dedicou-se, com minúcia, à colocação e circulação de pessoas – nas forças armadas, na administração central, na administração local, nos organismos corporativos, e ainda nas empresas onde o Estado tinha representação. Fê-lo com a manha que lhe recomendava em 1948 o seu ministro da Guerra, Fernando Santos Costa, referindo-se a um oficial que iria dirigir interinamente o ministério: “Se V. Exa. tiver ensejo de em qualquer dia lhe dar uma telefonadela só a perguntar se há alguma novidade, será muito bom. Fica lisonjeado e por isso mesmo mais ligado a V. Exa. como convém nestes tempos de desorientação que vão correndo”.
Essa gestão da pequena elite política e social portuguesa, através de uma distribuição calculada de destaques, empregos, sinecuras, favores, “telefonadelas” e pequenas atenções, foi a sua principal arte e deveria ser talvez o principal objecto de estudo para quem queira perceber o poder salazarista.
Ao longo do tempo, desenvolveu-se à volta de Salazar uma espécie de vida de corte, cujas intrigas ele próprio alimentava, com o sangue frio que lhe dava a convicção da sua superioridade. Em Setembro de 1966, observou a Franco Nogueira que em Espanha “o Franco está fazendo uma experiência, criando um princípio de caos, para depois ter fundamento para fazer regressar tudo ao começo e à sua autoridade”. E quanto a ele próprio, “não se me dava de um bocado de caos e confusão cá dentro, acho divertido”.
O poder pessoal, exercido com tanta dureza como malícia, começou a parecer a muitos o motivo egoísta da ditadura. Significativamente, nenhum dos possíveis sucessores do “chefe” – e portanto, potenciais rivais – alguma vez escapou ao saneamento: Manuel Rodrigues, ministro da Justiça, Armindo Monteiro, ministro das Colónias e depois embaixador em Londres, Marcello Caetano, e até Pedro Theotónio Pereira, subsecretário de Estado das Corporações, perceberam que essa reputação era letal.
Nas suas memórias, outro dos eventuais sucessores, Marcello Caetano, ministro das Colónias e depois ministro da Presidência, fala mesmo do “ciúme” que Salazar não conseguia disfarçar de todos aqueles em quem “adivinhasse actuais ou possíveis competidores”. Por vezes, fez questão de exibir a sua desconfiança. Em 1961, recomendou a Franco Nogueira, ministros dos Negócios Estrangeiros: “Em conselho de ministros, não revele segredos”. E explicou a razão: “Os ministros não merecem confiança”. Era assim mesmo que o regime estava organizado: por exemplo, ninguém a não ser o chefe do governo estava isento de censura prévia.
Particularmente irritante para os mais lúcidos, era o hábito de Salazar, quando os afastava, de dar a entender que o fazia contra-vontade, por pressão da facção contrária. A ideia das “correntes” do regime servia a Salazar para evadir responsabilidades quando aniquilava politicamente alguém: era tudo feito em nome do “equilíbrio”. O seu jogo, aliás, não foi tanto equilibrar facções, mas manter uma guerra branda entre elas, de modo a fazer de si próprio o fiel da balança do regime. Era um mestre da intriga e da insinuação, jogando com as vaidades, as ganâncias, e as fragilidades dos que o rodeavam.
A política salazarista teve sempre uma dimensão fundamental de “pequena política”. Em 1965, numa carta a Fernando Santos Costa, seu antigo rival na corte salazarista, Marcello Caetano concluiu: “o Dr. Salazar não queria instaurar um regime, mas sustentar um equívoco que lhe permitisse governar, dividindo”.
A verdade é que nem sempre Salazar se terá sentido seguro na sua teia de personalidades e grupos contraditórios. Marcello Caetano, que também tinha as suas horas de malícia, não resistiu nas suas memórias, em 1977, a descrever um incidente que lhe teria dado a medida de quanto Salazar o temia. Na noite do dia 31 de Maio de 1958, Marcello visitou Salazar inesperadamente, anunciando que vinha da Presidência da República. Constava que o Presidente, o general Craveiro Lopes, se deixara embevecer por Marcello, e que essa teria sido uma das razões por que Salazar evitara a sua reeleição em 1958. Mas nessa noite de 31 de Maio, Craveiro Lopes ainda detinha legalmente os poderes da Presidência.
Como Marcello Caetano conta, ao entrar no gabinete do Presidente do Conselho, viu, durante “um instante”, a cara de Salazar “transtornar-se numa expressão de ansiedade, para não dizer de aflição”: “ia jurar que pelo seu espírito passou, num relâmpago, a ideia de que, usando os poderes constitucionais […], [o Presidente da República] o tivesse demitido … Talvez, quem sabe, para o substituir por mim…” Mais do que terá ou não passado pelo espírito de Salazar, o episódio revela o que certamente passou pelo espírito daquele que, nesse momento, era o seu colaborador mais importante no governo. Os salazaristas nunca conviveram na paz dos anjos, nem entre eles, nem com Salazar.
Rui Ramos, Observador