terça-feira, 30 de maio de 2023

Estado Novo A “vantagem” política da guerra do Ultramar

Geralmente, aceita-se que o Estado Novo correspondeu ao ar do tempo na década de 1930 e no começo da década de 1940, durante a II Guerra Mundial. O clímax dessa adequação política e estética teria estado na exposição e congressos do “Mundo Português” de 1940. A partir de 1945, porém, tudo teria mudado. Os vinte e três anos que Salazar governou após 1945 teriam sido uma descida. O seu biógrafo oficial e ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira, fala de “resistência”. Salazar teria apenas “aguentado”, isto é, adiado um fim pré-determinado.
Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, a esquerda mostrou-se inconformada na oposição. Depois da morte de Carmona em 1951, os comandos das forças armadas envolveram-se outra vez nas intrigas do regime. A partir de 1958, passou a haver oposição significativa à ditadura entre correntes de opinião outrora fiéis, como os monárquicos e os católicos. No país, a transformação económica e social de que o regime precisou para se legitimar fez ao mesmo tempo desaparecer a velha sociedade rural, onde era possível confiar na Igreja Católica para disciplinar o povo e no comunismo para assustar a classe média.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) desautorizou o clero mais conservador. Uma população escolar em expansão (o número de estudantes universitários duplicou então) protagonizou uma ruptura geracional de valores.
Na década de 1960, 75% da população já tinha nascido depois da subida de Salazar ao poder. A comparação que para as novas gerações fazia sentido não era com os regimes portugueses anteriores, mas com outros regimes europeus – pouco lhes interessava que todos os números de desenvolvimento fossem muito melhores do que os de 1926, como de facto eram; o que lhes importava é que ainda não eram tão bons como os da França ou da Alemanha ocidental. O crescimento da inflação, depois de 1965, prenunciou desequilíbrios.
Mas na década de 1960, no meio de um mundo em mudança, Salazar soube fazer a ditadura enquadrar dois projectos capazes de suscitar adesão: um foi o do desenvolvimento do país, demonstrado pelas taxas de crescimento económico mais altas da sua história e pela expansão também sem precedentes de instituições de inclusão e promoção, como a Segurança Social, os cuidados de saúde e a escola; o outro foi a opção de manter a administração portuguesa em África, quando as outras potências europeias retiravam. O homem creditado com ter poupado o país à II Guerra Mundial envolveu-o depois de 1961 no maior esforço militar de uma nação ocidental desde 1945.
A “defesa do Ultramar” foi a razão que frequentemente Salazar deu em privado e em público para se manter no poder durante os anos 1960. Foi também a razão depois dada para cancelar a perspectiva de uma “normalização” do regime à maneira ocidental. Justificou, por exemplo, as restrições à vida pública, como a censura à imprensa. Por outro lado, congelou a política.
Em Abril de 1961, Salazar pôde usar o “Angola, rapidamente e em força” para pôr termo às intrigas na elite do regime. A oposição dividiu-se. Os republicanos estavam tão ou mais ligados ao Ultramar do que os salazaristas. O chefe da oposição em 1949 tinha sido o general Norton de Matos, o grande herói da colonização de África no século XX. Provavelmente, se a oposição tivesse ganho em 1945, talvez também tivesse havido uma guerra para defesa de Angola em 196.
Muitos republicanos fizeram questão, pela primeira vez em trinta e cinco anos, de aplaudir o regime. Mesmo aqueles que não aplaudiram deixaram de ter a mesma pressa em derrubar Salazar. Álvaro Cunhal notou que havia na oposição quem não desejasse ir para o poder antes de o Ultramar ter sido perdido. Ninguém queria ficar com essa responsabilidade. Por isso, a defesa do Ultramar funcionou, em meados da década de 1960, como o seguro de vida do salazarismo.
A ditadura salazarista explorou então uma mística histórica, assente na presumida actualidade da expansão ultramarina, o que levou Eduardo Lourenço a admitir que “o Portugal de Salazar foi o último que se assumiu e viveu como um destino”. Mas há aqui um velho equívoco. Salazar nunca se viu a si próprio como um sobrevivente do velho Portugal conquistador, resistindo aos “ventos da história” contra toda a lógica e interesses. Como explicou a Franco Nogueira, a defesa do Ultramar não era uma questão de “fé”, mas de conveniências e de vantagens. A resistência em África era possível, porque os independentistas nunca tiveram força para sujeitar os portugueses a uma guerra equivalente à da Argélia ou do Vietname, e porque a pressão diplomática também nunca foi decisiva.
Finalmente, a prosperidade de Angola e de Moçambique, que atraiu milhares de portugueses, pareceu justificar a sua defesa. Na metrópole, o crescimento económico suscitado pela integração na EFTA (1959) e pelo turismo viabilizou o esforço militar. Mesmo assim, Salazar não sabia quanto tempo podiam durar: “quando encontrarmos um obstáculo intransponível, então reconsideraremos”. Mas “isto é só para nós. Para a opinião pública, para o país, só temos certezas e confiança”. A sua inflexibilidade nunca foi mais do que um mito que lhe conveio criar.