domingo, 28 de maio de 2023

Estado Novo O grande equilíbrio dos pequenos poderes

Até agora, ao longo das últimas cinco newsletters, examinámos duas questões: a duração do Estado Novo e o seu sentido político. Vimos como Salazar conseguiu, nos dois casos, inserir o Estado Novo na sociedade portuguesa e na cultura política do seu tempo. Isso garantiu o sucesso da ditadura. Mas o sucesso de uma ditadura não é necessariamente o sucesso de um ditador. No Verão de 1926, a Ditadura Militar portuguesa passou rapidamente por vários “ditadores”: o general Gomes da Costa derrubou o almirante Mendes Cabeças, e foi por sua vez derrubado pelo general Carmona.
Houve ditaduras que puseram em causa o seu líder de um modo decisivo: foi o caso do Grande Conselho do Fascismo em Itália, em Julho de 1943, ao votar contra Mussolini e assim precipitar a sua demissão pelo Rei, e foi também o caso do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, em Outubro de 1964, ao impor a resignação de Nikita Khrushchev. Não basta uma ditadura para manter um ditador.
Salazar nunca foi dispensado de fazer política para se manter no poder, isto é, de congregar aliados e de dividir adversários. A historiografia reduziu a história política do Estado Novo ao confronto entre os salazaristas e as oposições. Mas a luta política dentro do salazarismo é pelo menos tão fundamental para perceber o Estado Novo.
O Estado Novo, enquanto regime, nunca perdeu o ar de algo inacabado e impreciso, próximo do “começo” – e, portanto, também de um possível fim. Ao longo de décadas, foi mais uma “situação” (como aliás se dizia), um governo, do que propriamente um regime.
O corporativismo, por exemplo, nunca saiu completamente do papel. Nos anos 1930, foi lançado a partir de uma subsecretaria de Estado, e não de um ministério. A Câmara Corporativa foi sempre consultiva. Tudo, de facto, se resumia à “chefia personalizada” de Salazar, que fundamentalmente conservou a estrutura de poder inicial: uma ditadura militar com um chefe de Governo civil que dirigia directamente a censura à imprensa e a polícia política.
Ao passar pela direcção da União Nacional na década de 1950, Marcello Caetano descobriu que o Governo era “a única realidade política activa, apoiado no aparelho administrativo e nas polícias” (a administração expandir-se-ia de 30-40 mil funcionários na década de 1930 para cerca de 200 mil na década de 1960). Adriano Moreira viu o Estado Novo como um edifício de presidências, conselhos, assembleias e outros “órgãos que não tinham funcionado nunca com responsabilidade própria, e apenas estavam apontados na Constituição”.
O que Marcello Caetano e Adriano Moreira diziam era que havia um poder salazarista, mas que esse poder não correspondia a instituições políticas autónomas, que tivessem uma base própria e fossem capazes de funcionar por si próprias. Em 1951, no congresso da União Nacional em Coimbra, Caetano perguntou abertamente: “O Estado Novo será verdadeiramente um regime, ou não será mais do que o conjunto das condições adequadas ao exercício do Poder por um homem de excepcional capacidade governativa?”
A resposta era óbvia. Salazar soube usar as máximas da Antiguidade clássica: o tirano podia ser suportável se desse ideia de que não dominava por interesse pessoal. O “bom tirano” era, em primeiro lugar, um tirano sobre si próprio. E foi assim que Salazar se apresentou – sacrificado ao bem público, privado de ócios, de prazeres, de liberdade…
Nunca ninguém contestou a sua honestidade pessoal. O velho grão-mestre da Maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima (falecido em Dezembro de 1928), ainda teve tempo de o admirar desse ponto de vista: “Salazar é um homem profundamente honesto”.
A todos os seus visitantes, Salazar impressionou pelo seu conhecimento dos dossiers e pela sua prudência. Durante a II Guerra Mundial, um agente inglês descreveu-o assim: “é como um homem que, tendo de transportar cargas pesadas através de uma ponte frágil, sabe o que a ponte pode aguentar e carrega o seu carro em conformidade”.
Ouvia muita gente. Mas não gostava de grandes reuniões, preferindo falar com os seus colaboradores um a um. Aproveitou esse hábito intimista para deixar a todos a impressão de que estava com eles. Quando discursava em público, tinha o cuidado de ser abstracto e alusivo, para permitir várias interpretações. Evitou sempre definir-se claramente em relação às questões que sabia poderem fracturar os salazaristas (por exemplo, a opção entre república e monarquia).
Por debaixo disto, dedicou-se, com minúcia, à colocação e circulação de pessoas – nas forças armadas, na administração central, na administração local, nos organismos corporativos, e ainda nas empresas onde o Estado tinha representação. Fê-lo com a manha que lhe recomendava em 1948 o seu ministro da Guerra, Fernando Santos Costa, referindo-se a um oficial que iria dirigir interinamente o ministério: “Se V. Exa. tiver ensejo de em qualquer dia lhe dar uma telefonadela só a perguntar se há alguma novidade, será muito bom. Fica lisonjeado e por isso mesmo mais ligado a V. Exa. como convém nestes tempos de desorientação que vão correndo”.
Essa gestão da pequena elite política e social portuguesa, através de uma distribuição calculada de destaques, empregos, sinecuras, favores, “telefonadelas” e pequenas atenções, foi a sua principal arte e deveria ser talvez o principal objecto de estudo para quem queira perceber o poder salazarista.
Ao longo do tempo, desenvolveu-se à volta de Salazar uma espécie de vida de corte, cujas intrigas ele próprio alimentava, com o sangue frio que lhe dava a convicção da sua superioridade. Em Setembro de 1966, observou a Franco Nogueira que em Espanha “o Franco está fazendo uma experiência, criando um princípio de caos, para depois ter fundamento para fazer regressar tudo ao começo e à sua autoridade”. E quanto a ele próprio, “não se me dava de um bocado de caos e confusão cá dentro, acho divertido”.
O poder pessoal, exercido com tanta dureza como malícia, começou a parecer a muitos o motivo egoísta da ditadura. Significativamente, nenhum dos possíveis sucessores do “chefe” – e portanto, potenciais rivais – alguma vez escapou ao saneamento: Manuel Rodrigues, ministro da Justiça, Armindo Monteiro, ministro das Colónias e depois embaixador em Londres, Marcello Caetano, e até Pedro Theotónio Pereira, subsecretário de Estado das Corporações, perceberam que essa reputação era letal.
Nas suas memórias, outro dos eventuais sucessores, Marcello Caetano, ministro das Colónias e depois ministro da Presidência, fala mesmo do “ciúme” que Salazar não conseguia disfarçar de todos aqueles em quem “adivinhasse actuais ou possíveis competidores”. Por vezes, fez questão de exibir a sua desconfiança. Em 1961, recomendou a Franco Nogueira, ministros dos Negócios Estrangeiros: “Em conselho de ministros, não revele segredos”. E explicou a razão: “Os ministros não merecem confiança”. Era assim mesmo que o regime estava organizado: por exemplo, ninguém a não ser o chefe do governo estava isento de censura prévia.
Particularmente irritante para os mais lúcidos, era o hábito de Salazar, quando os afastava, de dar a entender que o fazia contra-vontade, por pressão da facção contrária. A ideia das “correntes” do regime servia a Salazar para evadir responsabilidades quando aniquilava politicamente alguém: era tudo feito em nome do “equilíbrio”. O seu jogo, aliás, não foi tanto equilibrar facções, mas manter uma guerra branda entre elas, de modo a fazer de si próprio o fiel da balança do regime. Era um mestre da intriga e da insinuação, jogando com as vaidades, as ganâncias, e as fragilidades dos que o rodeavam.
A política salazarista teve sempre uma dimensão fundamental de “pequena política”. Em 1965, numa carta a Fernando Santos Costa, seu antigo rival na corte salazarista, Marcello Caetano concluiu: “o Dr. Salazar não queria instaurar um regime, mas sustentar um equívoco que lhe permitisse governar, dividindo”.
A verdade é que nem sempre Salazar se terá sentido seguro na sua teia de personalidades e grupos contraditórios. Marcello Caetano, que também tinha as suas horas de malícia, não resistiu nas suas memórias, em 1977, a descrever um incidente que lhe teria dado a medida de quanto Salazar o temia. Na noite do dia 31 de Maio de 1958, Marcello visitou Salazar inesperadamente, anunciando que vinha da Presidência da República. Constava que o Presidente, o general Craveiro Lopes, se deixara embevecer por Marcello, e que essa teria sido uma das razões por que Salazar evitara a sua reeleição em 1958. Mas nessa noite de 31 de Maio, Craveiro Lopes ainda detinha legalmente os poderes da Presidência.
Como Marcello Caetano conta, ao entrar no gabinete do Presidente do Conselho, viu, durante “um instante”, a cara de Salazar “transtornar-se numa expressão de ansiedade, para não dizer de aflição”: “ia jurar que pelo seu espírito passou, num relâmpago, a ideia de que, usando os poderes constitucionais […], [o Presidente da República] o tivesse demitido … Talvez, quem sabe, para o substituir por mim…” Mais do que terá ou não passado pelo espírito de Salazar, o episódio revela o que certamente passou pelo espírito daquele que, nesse momento, era o seu colaborador mais importante no governo. Os salazaristas nunca conviveram na paz dos anjos, nem entre eles, nem com Salazar.
Rui Ramos, Observador