segunda-feira, 10 de novembro de 2025

A comunicação social, as redes sociais e o 25 de Novembro

É conhecido o horror que a comunicação social em geral alimenta a respeito das redes sociais. Ouvimo-lo e lemo-lo variadíssimas vezes. Recentemente um comentador da SIC recomendou até aboli-las gradualmente. O contraste proclamado é conhecido: a comunicação social é a informação, as redes sociais a desinformação; a comunicação social é a verdade, as redes sociais as mentiras; a comunicação social é a luz, as redes sociais as trevas. Os factos não são assim, já que a comunicação social também tem as suas zonas negras e as redes sociais proporcionam grandes benefícios.

Se a comunicação social tivesse um comportamento geralmente isento e decente, aberto e avesso à manipulação, interessado no serviço do público, no direito à informação e sem agendas premeditadas, a dependência das redes sociais por parte de muitos cidadãos e variados sectores cívicos não se teria instalado. Pode ser triste dizê-lo, mas a verdade é esta: hoje, a liberdade de expressão e de informação é mais tributária das redes sociais do que da comunicação social.

As redes sociais também ecoam e reportam a comunicação social, enquanto esta cala as redes sociais, excepto para as sujeitar a “fact checks”. E, nas redes sociais, é possível apresentar e explicar, responder, replicar e reagir, mas não na comunicação social. As redes sociais carecem, sem dúvida, de regulação que as reconduza a um espaço geral de responsabilidade e faça desaparecer naturalmente os excessos, a selvajaria, a cultura fora-da-lei. Mas são um formidável instrumento, essencialmente democrático, que permite a qualquer cidadão ou organização agir na hora e conhecer directamente, em relação aberta com literalmente o mundo inteiro, como nenhum outro meio de comunicação anteriormente. E é uma enorme garantia de defesa da cidadania contra os poderzinhos instalados no sistema de comunicação social, que aplicam frios modelos autoritários de cancelamento de todos os que, a cada momento, segregam.

Se, ao menos, a comunicação social fosse plural, este cancelamento imperante não existiria: como vemos noutros países, os “cancelados” por uns não seriam “cancelados” por outros e todos, a final, teriam espaço num quadro de efetiva pluralidade. Mas, por uma bizarra singularidade portuguesa, a pluralidade é muito aparente, entre nós: por um lado, nos órgãos onde a pluralidade existe, é restrita ao espaço de opinião e, muitas vezes, com espectro estreito; por outro lado, normalmente não abrange a informação e, ao fim de algum tempo de operação, todos tendem a cobrir as mesmas coisas e a olhá-las da mesma maneira, o que é a própria negação da pluralidade. É como se houvesse subjacente uma oligarquia da agenda, com o poder fáctico de pôr fora-de-jogo quem não quer e de quem não gosta.

Não é a primeira vez que reflicto sobre estas questões. Vivo, nesta altura, uma experiência dessas de cancelamento geral.

A Sociedade Histórica da Independência de Portugal é, de há muito, objecto de cancelamento geral: é praticamente impossível conseguirmos publicação de uma só notícia sobre as actividades que desenvolvemos. Já não estranhamos. Não nos conformamos, pois é impossível alguém habituar-se à mordaça e ao silenciamento. Mas não nos surpreendemos. As redes sociais têm sido, por isso, a alameda onde podemos e conseguimos comunicar e exercer a nossa liberdade e cidadania, contornando a censura estabelecida pelos patrões da agenda mediática. Apesar de recursos muito limitados, temos, ao fim de quatro anos, 27.800 seguidores na nossa página principal e tivemos, recentemente, 380.000 visualizações num vídeo de narração histórica. Passo a passo. Grão a grão.

Como Presidente da Direcção da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, estou a dirigir um ciclo sobre os “50 anos do 25 de Novembro”, revivendo os “desvios, confrontos, percalços da Revolução e o triunfo da Democracia”. Com sete sessões semanais, no Palácio da Independência, todas as quartas-feiras, começou em 15 de Outubro e acabará a 26 de Novembro. Nas primeiras quatro sessões, conversámos sobre “Primeiros abalos” (Julho-Setembro 1974), “Choques: descolonização e partidos” (Outubro 1974-Março 1975), “Golpe e contragolpe” (11 de Março) e “Legitimidade democrática” (eleições constituintes, 25.abr.1975). Nas próximas três, trataremos “A fractura” (Verão quente: Maio-Agosto 1975), “A aceleração” (Verão quente: Setembro-Novembro 1975) e “Democracia e Liberdade” (25 de Novembro). A última sessão foi a 5 de Novembro, a próxima será depois de amanhã, no dia 12.

Toda a comunicação social tem recebido notas de imprensa prévias, anunciando cada uma das sessões do Ciclo “50 anos do 25 de Novembro” e seus intervenientes. Recebe também uma sinopse sintética do respetivo conteúdo. É um ciclo muito simples, planeado para desfiar retrospectivamente os factos do nosso PREC e a sua sucessão e intensidade, permitindo compreender “O que foi” e “Como aconteceu”, sem fantasias. Temos tido como moderadores Henrique Monteiro e Raquel Abecasis. O painel residente integra, rotativamente, Carlos Magno, José Luís Ramos Pinheiro, Maria João Avillez, Nuno Rogeiro e eu próprio. E como convidados, temos tido João Soares, Coronel José Sanches Osório, Embaixador Luís de Almeida Sampaio e Zita Seabra, a que se juntarão Nuno Pena, General António Vaz Afonso, Coronel Florindo de Morais e Hélder de Oliveira.

De toda a comunicação social, nenhum órgão esteve presente em qualquer das quatro sessões, a não ser a Rádio Renascença na primeira sessão, que abriu o Ciclo. Repito, nenhum! Um grupo de média tinha-nos até prometido envolvimento, parceria, colaboração. Quando se aproximou a montagem e lançamento, deixou de atender o telefone e de responder às chamadas.

Ora, objectivamente, não se pode dizer que o ciclo não tem interesse. Não tem interesse o 25 de Novembro? Não têm interesse as fracturas e os confrontos, os golpes e contragolpes, o cerco da Constituinte, o começo, ascensão e queda do gonçalvismo, as centenas de prisões políticas, o país dividido, a violência contra sedes partidárias, os SUV, o contar das espingardas, o desastre a anunciar-se?

Não tem interesse a verdade na ocasião dos 50 anos? Não tem interesse o testemunho simples e verdadeiro de pessoas que viveram esses factos, alguns na primeira linha? Pode ser que não tenha interesse para algum manipulador autoritário de “verdade” feita e imposta. Mas para toda a comunicação social? Ah!… a tal mãozinha invisível oligárquica.

Se não fossem as redes sociais, estaríamos asfixiados pelo cerco; assim, não sendo o ideal, podemos comunicar. Enquanto os outros ficam com a sua ditadura, onde não existimos, as redes são a nossa liberdade. Podemos fazer chegar, até em directo, a verdade que vivemos e conhecemos, debatemos e revelamos. Em certo sentido, as redes sociais são o nosso 25 de Novembro contemporâneo, o nosso momento Danny Kaye.

sábado, 8 de novembro de 2025

SDS ou Historia para os mais novos (e para os velhos iliteratos)

Em 25 de Março de 2007 teve lugar a finalíssima do concurso da RTP Os Grandes Portugueses. Era uma data importante para a estação pública de televisão, que fazia meio século. Para a comemoração, que coincidia com o final do programa, estava previsto um banquete. A mesa estava posta nos estúdios e era farta… até que se soube o resultado do concurso. Então, apagaram-se os holofotes, desceu sobre a festa uma cortina de incrédulo desconcerto, mergulhando-a como que numa longa noite de clandestinidade, e o banquete para ali ficou, suponho que intocado.
.
Os finalistas do concurso incluíam reis, como o fundador D. Afonso Henriques ou D. João II, o Príncipe Perfeito, Nun’Álvares Pereira, o Condestável, figuras de proa da expansão marítima, como o Infante D. Henrique e Vasco da Gama, grandes poetas, como Luís de Camões e Fernando Pessoa, e estadistas controversos, como o marquês de Pombal.
Mas apesar do peso histórico de todos esses grandes portugueses, os primeiros três entre os dez que ficaram das sucessivas eliminatórias eram todos do século XX e todos “políticos”: Salazar, da direita nacional, conservadora e autoritária, Álvaro Cunhal, da esquerda comunista, internacionalista e totalitária e Aristides Sousa Mendes, um centrista, celebrado pela sua acção humanitária, ao facilitar, no consulado de Portugal em Bordéus, passaportes portugueses para judeus perseguidos.

Ganhou Salazar, com 41% dos votos, seguido por Álvaro Cunhal, com 19,1%, e Aristides Sousa Mendes, com 13%. Sousa Mendes era defendido pelo José Miguel Júdice, Cunhal pela deputada Odete Santos, e Salazar por Jaime Nogueira Pinto.
Diga-se que, na altura, mais ainda do que agora, não havia quem quisesse dar-se ao trabalho de defender Salazar fora do aconchego do lar ou de um táxi – onde geralmente se optava pela modalidade “um Salazar em cada esquina”, então em voga (o Salazar em três pessoas distintas, dois para se contradizerem e um para desempatar, ainda não tinha cá chegado). Por isso, quando o convidaram, Jaime Nogueira Pinto perguntou se esperavam que o defendesse como advogado ou como historiador. Disseram-me que devia defender Salazar como advogado, ou seja, podendo valorizar os aspectos positivos do meu “cliente” e justificar, sem os omitir, os negativos.

A vitória do “ditador,” do “fascista” António de Oliveira Salazar[*] – um candidato só admitido a concurso à última hora e por força dos protestos contra a sua ausência da lista dos elegíveis – deveu-se a um fenómeno muito português de reacção ao silenciamento e à manipulação ideológica, que encontrava no concurso uma brecha para se expressar. Não era, evidentemente, uma apreciação serena da História de Portugal, em que o Fundador e o Condestável, por exemplo, essenciais à independência do país, ou o Infante D. Henrique, D. João II e Vasco da Gama, figuras-chave da expansão que deu massa crítica ao Reino para escapar à atracção centralista de Castela-Espanha, assumiriam maior importância.
O que estava em jogo era um jogo. E o jogo era político. Talvez por isso, tal como na América, em França e em Inglaterra (onde ganharam Reagan, De Gaule e Churchill), aqui as personagens do século XX dominaram. E houve também um alinhamento ideológico à volta de dois “extremos” que, nalgumas coisas, se tocavam – Salazar e Cunhal eram dois homens inteligentes, convictos e coerentes nas suas convicções, muito diferentes entre si, mas também muito diferentes, para o bem e para o mal, dos “moderados”, dos “rolhas”, dos pequenos, grandes e médios corruptores activos ou passivos que muita gente via e vê no grosso da classe política.

Essa vitória de Salazar, do “fascismo”, ainda que só num concurso, foi talvez o primeiro balde de água fria que inesperadamente caiu sobre os “fazedores de opinião”, uma premonitória surpresa desagradável, que receberam com a incredulidade ofendida de quem está perante uma vil traição.
Ao contrário dos “fazedores de opinião”, cuja opinião contribuíra para manipular com grande sucesso o Dr. Cunhal, quando usava para os seus fins e para os da União Soviética o ardil do “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, sabia bem que aquela sua via rápida de Auschwitz à António Maria Cardoso não passava de um ardil. E que não eram minimamente comparáveis, até em número relativo de presos políticos, a repressão do Estado Novo e o holocausto hitlerista; e muito menos os desmandos e sevícias do Estado Novo e as carnificinas comunistas do maoismo e do sovietismo. Respeito quem é coerente e se bate pelos seus ideais até à prisão e à morte, mas os “excessos” do Estado Novo e do hitlerismo ou do comunismo soviético e chinês não são nem podem ser realidades comparáveis. Jaime Nogueira Pinto tentou explicá-lo quando defendeu Salazar. E não tendo sido salazarista no tempo de Salazar, tendo combatido o marcelismo e tendo vivido toda a minha vida consciente na oposição, antes e depois do 25 de Abril, achou que podia fazê-lo com independência e à vontade.

Mas em Portugal, onde o golpe militar de Abril, o PREC e o domínio dos instrumentos culturais e mediáticos pela Esquerda condicionaram a percepção da História do século XX, estipulou-se que o lugar de Salazar era na galeria dos horrores; e para que os figurantes da galeria continuem a desempenhar o conveniente papel de espantalhos ou papões que a Esquerda lhes atribuiu, carrega-se-lhes nas cores até à caricatura e enxota-se toda a vontade de distância crítica, de análise, de verdade, com esperança de que o povo ignore as tristezas do presente e vá atrás.

Entretanto, quando alguém, por provocação e porque sabe para quem fala, se mostra subitamente imune ao Salazar’s Derangement Syndrome (SDS) – um reflexo local do famoso Trump’s Derangement Syndrome (TDS), que alastra pela Euro-América e acomete o entendimento e a capacidade de análise e de relativização –, rasgam-se vestes, fazem-se exaltadas referências à inconstitucionalidade das “apologias do fascismo”, esconjura-se a suposta beatificação de uma qualquer trindade salazarista, evoca-se Hitler…

É, infelizmente, o que tem vindo a acontecer a muitos dos que, atingidos cumulativamente pelo SDS e pelo TDS, têm a nobre missão de nos informar: à menção do nome-gatilho, vai-se-lhes abaixo o entendimento e entram em falência interna e externa, ignorando supostas objectividades e amalgamando atabalhoadamente passado, presente e futuro, muitas vezes sem que se deem conta.

Nesse Domingo de Março de 2007, quando ainda não havia Trump e Salazar era um só, o choque era mais compreensível. 
Tanto que, quando Odete Santos, desolada perante a “vitória do fascismo”, invocou o anti-fascismo da Constituição, tive de ser eu a acalmá-la, dizendo-lhe que o regime não tinha caído, que era apenas um concurso.
[*] Os que chamam a Salazar “fascista” só me lembram os que chamavam “comuna” ao Dr. Soares


sexta-feira, 7 de novembro de 2025

A angústia do jornalista

Porque é que, quando têm de entrevistar o líder do CHEGA, os jornalistas e comentadores ficam de repente estúpidos? 
A cena repete-se há anos. Ninguém parece querer ou ser capaz de fazer perguntas a André Ventura. Estão ali para o contradizer, para o desmentir, para lhe chamar nomes. Não são nem nunca foram assim com nenhum outro entrevistado. Álvaro Cunhal, que em 1975 tentou fazer abortar a democracia em Portugal, foi sempre entrevistado com urbanidade, apesar das suas incontornáveis “cassetes”.
Obtêm os entrevistadores, com os seus impropérios, alguma coisa de André Ventura? Não. 
É talvez o lado mais absurdo de tudo isto. 
De entrevista em entrevista, todos já deviam ter aprendido que Ventura não se deixa intimidar por más maneiras, e que vai preparado para armadilhas. Também seria de esperar que soubessem outra coisa: que os ataques do entrevistador dão uma enorme vantagem a Ventura. Outros entrevistados têm de responder a perguntas, ou correr o risco de parecer que não respondem; Ventura só tem de rebater e retribuir agressões e pedradas.

Os jornalistas e os comentadores não percebem isto? As pessoas, não sendo estúpidas, só se comportam como se o fossem por duas razões: ou quando não compreendem a situação, ou quando, compreendendo, o medo – a pior das emoções — as paralisa ao ponto de não conseguirem agir de modo inteligente. O segredo da entrevista a André Ventura parece-me que está aqui: diante de Ventura, o jornalista e o comentador são gente assustada. Mas não é Ventura que lhes mete medo. São os outros: todos os que o entrevistador imagina que o estejam a ver, ouvir ou ler a entrevistar André Ventura. É a pressão dessa multidão imaginária que torna estúpido o entrevistador.

O cerco que a esquerda e parte da direita montaram a André Ventura não dissuadiu 1,5 milhões de portugueses de fazerem do Chega, em seis anos, o segundo maior partido parlamentar. Não se deixaram intimidar. Mas aqueles que lutam por empregos, posições e destaque no sistema mediático, esses, sim, ficaram apavorados. A tese de que não se deve “dar plataforma” ao Chega ou de que o Chega não pode ser “normalizado” tornou a entrevista a André Ventura no exercício mais perigoso do jornalismo em Portugal. Diante de Ventura, o entrevistador sabe que toda a gente o está a vigiar. Vai ele deixar Ventura falar? Vai ele tratá-lo como a qualquer outro entrevistado? Ai dele: estará a incorrer no crime de lhe “dar plataforma” e de o “normalizar”. Por isso, a preocupação principal do entrevistador, perante Ventura, não é levá-lo a responder a perguntas, mas distanciar-se dele, mostrar que nada tem a ver com ele, pelo recurso primitivo de o afrontar e insultar.

Há, no jornalismo, activistas anti-Chega. Mas mesmo a manifestação do preconceito, de tão ostensiva, precisa de ser explicada, porque é regra, em relação a tudo o mais e por uma questão de profissionalismo, o jornalista tentar passar por imparcial. Só em frente de Ventura o fanático julga que pode ou até deve expor o seu fanatismo. Até o mais encartado activista se sente obrigado a exibir excesso de zelo. Não está menos assustado.

Numa entrevista a Ventura, é como se quem estivesse a ser entrevistado não fosse Ventura, mas o entrevistador. Funciona, para os entrevistadores, como uma espécie de entrevista de emprego. É a ocasião de provarem que nada têm a ver com Ventura e, por isso, merecem a consideração e as posições que têm ou a que aspiram. Tal como quando classificam os debates de Ventura, não estão a pensar no líder do Chega, mas nos colegas e correligionários que os possam acusar de simpatia pelo diabo ou de pouca fé, e fazê-los “cancelar”. Não lhes interessa a verdade, mas apenas serem aceites.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Tudo pela noção no Observador, nada contra a noção de Rui Antunes

André Ventura disse, e repetiu, que eram necessários três Salazares para meter o país na ordem. Muita gente, à esquerda e na direita moderada, ficou chocada e indignada como se o líder do Chega tivesse ultrapassado um novo limite intolerável. Mas, na verdade, não é novidade. Ventura já tinha recuperado, em 2021, o slogan do Estado NovoDeus, Pátria e Família”, acrescentando um quarto braço: o Trabalho. E foi sempre, propositadamente, equívoco quando confrontado com saudosismos do Estado Novo.
As provocações de Ventura são recorrentes e pretendem, acima de tudo, agitar as águas e ganhar palco mediático e mais uns minutinhos de antena. O que neste caso foi um objetivo atingido com sucesso. Isso não significa, porém, que o líder do Chega seja inimputável como se fosse um tolo e que não possa ser criticado e avaliado com os mesmos critérios de qualquer outro líder partidário. Manuela Ferreira Leite, por exemplo, foi altamente criticada quando disse, com alguma ironia à mistura, “não sei se não seria bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois venha a democracia”.

Ventura é hoje o líder da segunda maior bancada do Parlamento, do terceiro maior partido em votos, tem eleitos por todo o país e o partido lidera três autarquias. Tem, por isso, de ser escrutinado como qualquer líder partidário. Inclusive, nos disparates que diz. E o que disse sobre Salazar foi, efetivamente, um disparate.

O líder do Chega tem dito que “não é defensor” de Salazar e, antes de invocar o nome do ditador, chegou a dizer “eu sou um democrata”. Daqui depreende-se duas coisas: Ventura não defende o salazarismo e entende que Salazar  era anti-democrata. Não resistiu, no entanto, a defender o Estado Novo quando disse, na CNN no último sábado, que a “literacia de 1926 a 1950, passou 20 e tal por cento para 50%”. Um novo disparate, por omissão.

Seja comparando com 1968, quando Salazar caiu da cadeira, seja com 1974, quando o regime caiu, os dados mostram claramente que até ao 25 de Abril Portugal era dos países mais atrasados e com as maiores taxas de analfabetização da Europa. Uma das grandes conquistas da democracia foi conseguir praticamente a erradicação do analfabetismo nos mais jovens e a redução da taxa nacional para percentagens marginais (havia 3,1% de analfabetos em 2021 e a maioria de pessoas são pessoas que nasceram no antigo regime). A velocidade com que se combateu o analfabetismo em democracia foi incomparavelmente superior ao Estado Novo, principalmente nas zonas rurais.

Mesmo não sendo fã de Salazar, André Ventura fala recorrentemente do período pós-revolucionário, do verão quente, das FP-25 de Abril, das malfeitorias dos comunistas, mas nunca criticou a polícia política, a censura, o unipartidarismo, o corporativismo e a autocracia do Estado Novo. Ainda tem, depois, o topete de — na mesma câmara onde um dia só se sentaram deputados da União Nacional — dizer que eram precisos três Salazares. Um já seria demasiado. Um já foi demasiado.

Dizer que no tempo de Salazar não havia corrupção, é uma falácia. O primeiro-ministro, aliás, respondeu da melhor forma a Ventura, dizendo “a ditadura é ela própria a corrupção”. No tempo de Salazar, a corrupção e o nepotismo eram uma forma de estar. Se o homem de Santa Comba Dão teve uma vida regrada (nasceu pobre e não morreu rico — o que parece ser uma medalha para os saudosistas do Estado Novo), muitos dos senhores do regime enriqueceram num país esmagadoramente empobrecido. O encobrimento de escândalos dos poderosos e uma justiça que protegia só alguns, bem como o boicote permanente à separação de poderes, são a maior prova que o Estado Novo era em si um regime corrupto e corruptível.

Ventura ganhou, no curto prazo, o mediatismo que queria com a história dos Salazares. Mas cometeu um erro estratégico a médio-longo prazo. Desde logo, prestou um péssimo serviço à direita. Desde 1974 que os membros do CDS (e também do PSD) são chamados de fascistas. Basta ver Freitas em 1986. Já em 2004 continuava a ouvir-se nas ruas palavras de ordem da esquerda como “Portas e Santana/fascismo à paisana”. O próprio Passos Coelho, entre 2011 e 2017, também não escapou a essas acusações, só para dar alguns exemplos. A direita democrática sempre combateu esses rótulos, basta ver como Santana Lopes atirou a Fernando Rosas quando o bloquista lhe disse num painel de comentário que parecia o antigo ditador a falar. “Salazar é a sua tia”, respondeu Santana.

O próprio Chega tem-se esforçado para rebater a ideia de que os seus membros são fascistas, etiqueta que lhe é dada recorrentemente desde a fundação em 2019. Este tipo de comparações agora utilizadas por Ventura não ajudam à causa. Depois de chegar aos 23% nas legislativas — e ignorando o artifício da candidatura presidencial — Ventura tem alguns anos para convencer a parte do país que lhe falta de que não é extremista e que não seria um perigo para a própria democracia. Se é verdade que para a esmagadora maioria dos 23% não faz grande confusão que Ventura fale de Salazar ou não, para o eleitorado que tem de ir buscar ao centrão político, este tipo de analogias são das que assustam eleitores.

Na mesma linha, os novos cartazes do Chega também seriam dispensáveis. “Isto não é o Bangladesh”, que o Chega colocou nos outdoors, é uma frase verdadeira. É factual que estamos em Portugal e não no Bangladesh. Mas também é uma sonsice fingir que é apenas uma constatação factual. A frase faz parte de um vídeo viral criado por Inteligência Artificial que tem expressões racistas (mesmo que criadas para efeitos humorísticos) como “tira os putos castanhos da minha creche”, “raça inferior” ou “mal se consegue andar com tanto monhé”. O mesmo vídeo chega até a objetificar Rita Matias quando fala das suas “montanhas”, numa alusão desrespeitosa aos seios da deputada do Chega.

Não é difícil imaginar o que sentem os imigrantes do Bangladesh ao passarem pelo cartaz. Em dezembro de 2015, a sede do Clube Português de Brie-Comte-Robert, a sudeste de Paris, foi vandalizada, alegadamente por membros da então Frente Nacional, de Marine Le Pen. Na fachada desse clube foi escrita a seguinte frase: “Morte aos portugueses. Assinado: Frente Nacional”. Basta projetar o que os portugueses nessa zona da grande Paris terão sentido.

André Ventura acumula erros. Mesmo com ganhos a curto prazo para se afirmar como o mais anti-sistémico na luta particular com Henrique Gouveia e Melo, isso no máximo dá-lhe para ganhar a primeira volta das Presidenciais antes de ser trucidado nas urnas como o Le Pen pai e a Le Pen filha acabaram por ser em França mesmo contra fraquíssimos candidatos, como um desgastado Chirac ou um incompetente Macron.

A grande luta de Ventura não é, como se cenariza por aí, presidencializar o regime e governar a partir de Belém. Até porque uma maioria de dois terços para rever a Constituição nesse sentido (que seria necessária) é bem mais difícil de atingir (principalmente com outro candidato a primeiro-ministro) do que o próprio Ventura vir a ter uma maioria parlamentar. E, para esse objetivo, esta nova estratégia de Ventura não é eficaz. Pelo contrário, prejudica-o.

Se Ventura um dia for primeiro-ministro é, obviamente, pelas regras do jogo democrático. É o único que o eleitorado entende e respeita, mesmo que existam uns quantos ignorantes nos autocarros a dizer que “isto no tempo do Salazar é que era” e outros tantos patriotas de pacotilha a vomitar odes ao salazarismo nas redes sociais. Também não vale a pena a esquerda tentar ilegalizar o Chega por causa de cartazes xenófobos ou referências saudosistas e parolas ao salazarismo, porque isso seria sempre visto pelo povo (que é quem mais ordena, não são os juízes do Palácio Ratton) como uma vitória na secretaria. Se os outros partidos querem combater o Chega, têm de o fazer dentro do campo democrático. E se o Chega quer ser poder, tem de se moderar. Ventura devia ouvir mais vezes, se eventualmente tiver, conselheiros que pensem a política com ele. Em particular, aqueles que lhe possam dar algum filtro. Devia inspirar-se na adaptação de uma frase de Salazar que o afastasse do conservadorismo anacrónico e o aproximasse de convencionalismo moderno, que é necessário para crescer eleitoralmente: tudo pela noção, nada contra noção. Está a precisar.

sábado, 1 de novembro de 2025

Não fora o 25 de Novembro...


Em Setembro de 1975, Álvaro Fernandes, oficial do COPCON, às ordens de Otelo Saraiva de Carvalho, entregou a Isabel do Carmo e Carlos Antunes, dirigentes do PRP/BR, cerca de 1000 G3, subtraídas ao Depósito de Armamento do Exército Português. Naquela altura, todos os partidos tinham armas, embora nunca oficialmente. A norte, os ataques às sedes do PCP, tinham como resposta tiros de pistola ou metralhadora por parte de quem defendia as sedes. São vários os relatos, à esquerda e à direita, sobre a posse ou intenção de possuir armas. Havia armas em mãos de populares “para a defesa da revolução” ou “da reação”, conforme o lado em que se encontrassem, ainda que a convicção é que haveria mais nos movimentos revolucionários.
O que tornava diferentes estas armas na posse de Isabel do Carmo e Carlos Antunes? Primeiro, tinham sido retiradas de forma clara por um oficial do Exército Português, dependente hierarquicamente de Otelo e entregues a um grupo radical que vivia sob a proteção do Copcon. Segundo, porque foram entregues a um grupo de pessoas que nem sequer se constituíra como partido político e que se recusava a jogar segundo as regras da democracia, sem sequer ter concorrido às eleições de 25 de abril de 1975. Terceiro, porque esse grupo de ativistas tivera origem num grupo terrorista, criado, é certo, antes do 25 de Abril, mas que se tornara um dos movimentos mais radicais no espaço político do PREC e que, como sabemos, teria duas metamorfoses: o PRP/BR, até à prisão dos seus principais dirigentes e operacionais, em junho de 1978, e a segunda, mais radical, que a partir deste movimento se transformou nas sangrentas FP-25 de Abril dirigidas por Otelo, Mouta Liz e Pedro Goulart.
“O socialismo nunca se instaurou em sítio nenhum por eleições. União Soviética, China, Cuba fizeram uma revolução para instaurarem o socialismo. Até porque a burguesia não se deixa derrubar por via pacífica. O socialismo não é, pois, um presente de Natal, é uma conquista pela força” — explicava Isabel do Carmo ao jornal Expresso em maio de 1975.
O governo de Pinheiro de Azevedo tinha a preocupação de restabelecer a disciplina no Exército e de pôr fim às milícias populares existentes tanto a norte como a sul. Em virtude do elevado número de armas não legalizadas nas mãos de civis, o risco de confrontos armados ou da criação de novas milícias populares era demasiado perigoso.
Por outro lado, atendendo às pressões exercidas pela opinião pública, foi exigido a Carlos Antunes e Isabel do Carmo que devolvessem as armas que possuíam. Estes recusaram firmemente e encontraram uma solução criativa. De forma a preservar e defender o paiol de armamento que possuíam — onde se incluíam as mil G3 —, decidiram que o BR deveria passar à clandestinidade, levando consigo todo o material armazenado.
Mas antes, a 15 de outubro, porque a clandestinidade era financeiramente exigente, assaltaram o Banco Totta & Açores em Mira de Aire e o Banco de Angola na Damaia, a 21 do mesmo mês, levando 281 e 4237 contos — o equivalente hoje a mais de 200 mil e 700 mil euros, respetivamente (valores de setembro de 2025). Para onde foi esse dinheiro? Perguntem a Isabel do Carmo, a Gobern Lopes, entre outros.
E quais forma os primeiros atentados das BR agora na clandestinidade? A bomba de gás lacrimogénio na manifestação de apoio a Pinheiro de Azevedo (isto é só fumaça), uma bomba colocada na sede do CDS e o ataque à bomba a 5 esquadras da PSP, em Lisboa.
Se, pelo menos na frente civil, as Brigadas Revolucionárias já tinham assegurada a manutenção de milícias privadas, havia que garantir também a lealdade ideológica dentro do Exército e a submissão deste à revolução socialista. Em finais de agosto, foram criados os SUV – Soldados Unidos Vencerão, com o objetivo de formar células políticas dentro do Exército, garantindo que, no momento certo, pudessem atuar de forma autónoma em relação à hierarquia militar. Ainda que a vida deste movimento tenha sido efémera, algumas manifestações com tropa fardada assustaram muitos dos militares da ala mais moderada.
Durante este período, e através de declarações de ex-operacionais, é possível saber que o PRP/BR chegou a equacionar a execução de Jaime Neves e de Pires Veloso. A ideia surgiu em novembro de 1975, quando, numa reunião do COPCON, Otelo informou que já não poderia apoiar o movimento. Os passos e rotinas de Jaime Neves eram conhecidos. Tudo seria feito através da colocação de um engenho explosivo debaixo do carro de Jaime Neves. Sobre Pires Veloso, foi efetuada uma reunião secreta em Campo de Ourique, com um grau de planeamento semelhante. No entanto, a alteração da situação política que culminou no 25 de novembro acabou por enfraquecer essa intenção e redirecionar os esforços noutro sentido – a criação do grupo terrorista do PRP/BR.
Manuel Castelo Branco