terça-feira, 4 de novembro de 2025

Tudo pela noção no Observador, nada contra a noção de Rui Antunes

André Ventura disse, e repetiu, que eram necessários três Salazares para meter o país na ordem. Muita gente, à esquerda e na direita moderada, ficou chocada e indignada como se o líder do Chega tivesse ultrapassado um novo limite intolerável. Mas, na verdade, não é novidade. Ventura já tinha recuperado, em 2021, o slogan do Estado NovoDeus, Pátria e Família”, acrescentando um quarto braço: o Trabalho. E foi sempre, propositadamente, equívoco quando confrontado com saudosismos do Estado Novo.
As provocações de Ventura são recorrentes e pretendem, acima de tudo, agitar as águas e ganhar palco mediático e mais uns minutinhos de antena. O que neste caso foi um objetivo atingido com sucesso. Isso não significa, porém, que o líder do Chega seja inimputável como se fosse um tolo e que não possa ser criticado e avaliado com os mesmos critérios de qualquer outro líder partidário. Manuela Ferreira Leite, por exemplo, foi altamente criticada quando disse, com alguma ironia à mistura, “não sei se não seria bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois venha a democracia”.

Ventura é hoje o líder da segunda maior bancada do Parlamento, do terceiro maior partido em votos, tem eleitos por todo o país e o partido lidera três autarquias. Tem, por isso, de ser escrutinado como qualquer líder partidário. Inclusive, nos disparates que diz. E o que disse sobre Salazar foi, efetivamente, um disparate.

O líder do Chega tem dito que “não é defensor” de Salazar e, antes de invocar o nome do ditador, chegou a dizer “eu sou um democrata”. Daqui depreende-se duas coisas: Ventura não defende o salazarismo e entende que Salazar  era anti-democrata. Não resistiu, no entanto, a defender o Estado Novo quando disse, na CNN no último sábado, que a “literacia de 1926 a 1950, passou 20 e tal por cento para 50%”. Um novo disparate, por omissão.

Seja comparando com 1968, quando Salazar caiu da cadeira, seja com 1974, quando o regime caiu, os dados mostram claramente que até ao 25 de Abril Portugal era dos países mais atrasados e com as maiores taxas de analfabetização da Europa. Uma das grandes conquistas da democracia foi conseguir praticamente a erradicação do analfabetismo nos mais jovens e a redução da taxa nacional para percentagens marginais (havia 3,1% de analfabetos em 2021 e a maioria de pessoas são pessoas que nasceram no antigo regime). A velocidade com que se combateu o analfabetismo em democracia foi incomparavelmente superior ao Estado Novo, principalmente nas zonas rurais.

Mesmo não sendo fã de Salazar, André Ventura fala recorrentemente do período pós-revolucionário, do verão quente, das FP-25 de Abril, das malfeitorias dos comunistas, mas nunca criticou a polícia política, a censura, o unipartidarismo, o corporativismo e a autocracia do Estado Novo. Ainda tem, depois, o topete de — na mesma câmara onde um dia só se sentaram deputados da União Nacional — dizer que eram precisos três Salazares. Um já seria demasiado. Um já foi demasiado.

Dizer que no tempo de Salazar não havia corrupção, é uma falácia. O primeiro-ministro, aliás, respondeu da melhor forma a Ventura, dizendo “a ditadura é ela própria a corrupção”. No tempo de Salazar, a corrupção e o nepotismo eram uma forma de estar. Se o homem de Santa Comba Dão teve uma vida regrada (nasceu pobre e não morreu rico — o que parece ser uma medalha para os saudosistas do Estado Novo), muitos dos senhores do regime enriqueceram num país esmagadoramente empobrecido. O encobrimento de escândalos dos poderosos e uma justiça que protegia só alguns, bem como o boicote permanente à separação de poderes, são a maior prova que o Estado Novo era em si um regime corrupto e corruptível.

Ventura ganhou, no curto prazo, o mediatismo que queria com a história dos Salazares. Mas cometeu um erro estratégico a médio-longo prazo. Desde logo, prestou um péssimo serviço à direita. Desde 1974 que os membros do CDS (e também do PSD) são chamados de fascistas. Basta ver Freitas em 1986. Já em 2004 continuava a ouvir-se nas ruas palavras de ordem da esquerda como “Portas e Santana/fascismo à paisana”. O próprio Passos Coelho, entre 2011 e 2017, também não escapou a essas acusações, só para dar alguns exemplos. A direita democrática sempre combateu esses rótulos, basta ver como Santana Lopes atirou a Fernando Rosas quando o bloquista lhe disse num painel de comentário que parecia o antigo ditador a falar. “Salazar é a sua tia”, respondeu Santana.

O próprio Chega tem-se esforçado para rebater a ideia de que os seus membros são fascistas, etiqueta que lhe é dada recorrentemente desde a fundação em 2019. Este tipo de comparações agora utilizadas por Ventura não ajudam à causa. Depois de chegar aos 23% nas legislativas — e ignorando o artifício da candidatura presidencial — Ventura tem alguns anos para convencer a parte do país que lhe falta de que não é extremista e que não seria um perigo para a própria democracia. Se é verdade que para a esmagadora maioria dos 23% não faz grande confusão que Ventura fale de Salazar ou não, para o eleitorado que tem de ir buscar ao centrão político, este tipo de analogias são das que assustam eleitores.

Na mesma linha, os novos cartazes do Chega também seriam dispensáveis. “Isto não é o Bangladesh”, que o Chega colocou nos outdoors, é uma frase verdadeira. É factual que estamos em Portugal e não no Bangladesh. Mas também é uma sonsice fingir que é apenas uma constatação factual. A frase faz parte de um vídeo viral criado por Inteligência Artificial que tem expressões racistas (mesmo que criadas para efeitos humorísticos) como “tira os putos castanhos da minha creche”, “raça inferior” ou “mal se consegue andar com tanto monhé”. O mesmo vídeo chega até a objetificar Rita Matias quando fala das suas “montanhas”, numa alusão desrespeitosa aos seios da deputada do Chega.

Não é difícil imaginar o que sentem os imigrantes do Bangladesh ao passarem pelo cartaz. Em dezembro de 2015, a sede do Clube Português de Brie-Comte-Robert, a sudeste de Paris, foi vandalizada, alegadamente por membros da então Frente Nacional, de Marine Le Pen. Na fachada desse clube foi escrita a seguinte frase: “Morte aos portugueses. Assinado: Frente Nacional”. Basta projetar o que os portugueses nessa zona da grande Paris terão sentido.

André Ventura acumula erros. Mesmo com ganhos a curto prazo para se afirmar como o mais anti-sistémico na luta particular com Henrique Gouveia e Melo, isso no máximo dá-lhe para ganhar a primeira volta das Presidenciais antes de ser trucidado nas urnas como o Le Pen pai e a Le Pen filha acabaram por ser em França mesmo contra fraquíssimos candidatos, como um desgastado Chirac ou um incompetente Macron.

A grande luta de Ventura não é, como se cenariza por aí, presidencializar o regime e governar a partir de Belém. Até porque uma maioria de dois terços para rever a Constituição nesse sentido (que seria necessária) é bem mais difícil de atingir (principalmente com outro candidato a primeiro-ministro) do que o próprio Ventura vir a ter uma maioria parlamentar. E, para esse objetivo, esta nova estratégia de Ventura não é eficaz. Pelo contrário, prejudica-o.

Se Ventura um dia for primeiro-ministro é, obviamente, pelas regras do jogo democrático. É o único que o eleitorado entende e respeita, mesmo que existam uns quantos ignorantes nos autocarros a dizer que “isto no tempo do Salazar é que era” e outros tantos patriotas de pacotilha a vomitar odes ao salazarismo nas redes sociais. Também não vale a pena a esquerda tentar ilegalizar o Chega por causa de cartazes xenófobos ou referências saudosistas e parolas ao salazarismo, porque isso seria sempre visto pelo povo (que é quem mais ordena, não são os juízes do Palácio Ratton) como uma vitória na secretaria. Se os outros partidos querem combater o Chega, têm de o fazer dentro do campo democrático. E se o Chega quer ser poder, tem de se moderar. Ventura devia ouvir mais vezes, se eventualmente tiver, conselheiros que pensem a política com ele. Em particular, aqueles que lhe possam dar algum filtro. Devia inspirar-se na adaptação de uma frase de Salazar que o afastasse do conservadorismo anacrónico e o aproximasse de convencionalismo moderno, que é necessário para crescer eleitoralmente: tudo pela noção, nada contra noção. Está a precisar.