por MANUEL MARIA CARRILHO
O contrato com Sócrates para ser
comentador semanal no canal público de televisão teve de partir, ou de passar,
por Relvas. Isso é óbvio. E só a imagem do que terá sido essa negociação a dois
dá uma ideia arrepiante, mas bem clara, do estado de degradação extrema a que
chegou o regime.
É uma contratação que infelizmente
não surpreende porque, na verdade, José Sócrates e Miguel Relvas são políticos
siameses. Se olharmos bem para o perfil e para o percurso de um e de outro, a
conclusão impõe-se como evidente. E muitas coisas estranhas se tornam, de
repente, claras e compreensíveis.
A história da licenciatura de
Relvas foi o primeiro sinal de uma semelhança que se revela bem mais funda: o
mesmo fascínio pelo mundo dos negócios, o mesmo desprezo pela cultura e pelo
mérito, o mesmo tipo de relação com a comunicação social, o mesmo apego sem
princípios ao poder e, acima de tudo, a mesma lata, uma gigantesca lata! Só
falta mesmo ver também Sócrates a trautear a "Grândola, Vila Morena",
mas por este andar lá chegaremos...
O contrato com a RTP vem, de
resto, acentuar mais uma convergência entre Sócrates e Relvas, e num ponto
político extremamente sensível, que é o da conceção de serviço público de
televisão. Porque, com este contrato, Sócrates aparece a cobrir inteiramente a
devastação feita por Relvas no sector, e a bloquear tudo o que o PS pretenda
dizer ou propor sobre o assunto. E quem cauciona o que Relvas fez aqui,
cauciona tudo.
O que Sócrates deve fazer é
assumir as suas responsabilidades na crise, e pedir desculpa aos portugueses -
e para isso basta uma entrevista pontual, sóbria, esclarecedora e responsável.
É isso que os Portugueses merecem, é disso que a nossa democracia precisa, e é
a isso que o Partido Socialista tem direito. Ficar a pastar nos comentários,
pelo contrário, é puro circo político, e do pior: é usar o horário nobre do
serviço público de televisão para jogadas de baixa política e de pura revanche
política pessoal.
Como já há tempos afirmei,
Sócrates e Relvas são sem dúvida os dois políticos que mais contribuíram para a
crise moral, e de confiança, que o País atravessa. Uma crise que veio agudizar
todas as suspeitas com que os cidadãos olham para as suas elites dirigentes e
para o continuado fracasso da sua ação.
São casos que a radical
mediatização dos nossos dias facilita. Nomeadamente, porque ela abriu as portas
à irrupção de um novo tipo de político, que trocou o retrato de cidadão
esforçado, reservado e responsável de outros tempos, por um perfil em que o
traço dominante é, simplesmente, o da lata.
E essa lata, é o quê? É sobretudo
a expressão de uma afirmação pessoal sem limites de qualquer ordem, que tudo
arrasa no seu caminho, num júbilo mais ou menos histérico que dispensa
qualificações ou convicções que não sejam de ordem psicológica ou
comunicacional. Daí, naturalmente, a excitação voluntarista e a encenação
estridente que sempre a acompanham.
A lata não é certamente um
exclusivo dos políticos, mas tem neles um terreno de exceção. Ela aparece hoje
como um traço específico do que alguns autores têm diagnosticado como a
"nova economia psíquica" do nosso tempo. É isso que leva muita gente
a ver neles verdadeiros mutantes, e a lamentar nostalgicamente que, na
política, tenham desaparecido os verdadeiros líderes...
Mas seja ou não de mutantes que se
trata, é preciso reconhecer que os "políticos de lata" estão em
sintonia com muitas transformações do mundo contemporâneo, e que é por isso que
eles suscitam inegáveis apoios e vivas controvérsias. Figuras maiores, bem
ilustrativas deste fenómeno, são Sílvio Berlusconi ou Nicolas Sarkozy.
São sempre criaturas mitómanas,
destituídas de superego e, portanto, de sentido de culpa ou de responsabilidade.
Revelam uma contumaz incapacidade de lidar com a frustração, que é, como Freud
bem ensinou, onde começam todas as patologias verdadeiramente graves.
Com eles, tudo se dissolve num
narcisismo amoral, quase delinquente, que vive entre a alucinação de todos os
possíveis e a rejeição de quaisquer limites. Eles estão pois muito em linha com
o paradigma do ilimitado que tem anestesiado e minado o mundo nas últimas
décadas.
A lata tornou-se, deste modo, num
traço político muito frequente, que anima os mais variados, e lamentáveis,
tipos de voluntarismo. Não admira pois que os políticos de lata se
singularizem, não pela sua dedicação a causas ou a convicções, mas pelos
intermináveis casos em que se envolvem e são envolvidos.
É também por isso que eles têm
sempre que tentar voltar - foi assim com Berlusconi, é o que se tem visto com
Sarkozy, chegou a vez de José Sócrates. Não resistem... e todos encenam, para
disfarçar a sua doentia obsessão com o poder, umas travessias do deserto mais
ou menos culturais... Berlusconi com a música, Sarkozy com a literatura e o
teatro, Sócrates com a filosofia.
Mas o seu compulsivo
"comeback" acaba sempre por se impor, porque ele é o tributo que eles
têm que pagar à sua tão vazia como ilimitada mitomania. Com consequências,
atenção, que já conduziram várias sociedades e diversos países às piores
tragédias. Esperemos que não seja esse, desta vez, o caso - mas o aviso aqui
fica!...