A correcção política é uma
ideologia neomarxista que revê o conceito de classe proletária, o confronto de
classes definidas pelo processo de produção e o papel do Partido Comunista como
guia do Proletariado mundial. À violência revolucionária privilegiada como
instrumento de conquista do poder para a implantação do marxismo, contrapõe a
batalha cultural e a transformação das mentalidades.
A
Escola de Frankfurt e Lukács
A actual Correcção Política
tem as suas raízes remotas nos autores da Escola de Frankfurt que, nos anos
vinte do século passado, procuravam uma síntese de Marx e Freud, ligando
sociedade capitalista e repressão sexual. A sua base foi o Instituto de
Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, fundado por Felix Weil em 1923, e
que teve colaboradores como Georg Lukács, Wilhelm Reich e Theodor Adorno.
Deste núcleo inicial, Lukács
é talvez o personagem mais interessante. Nascido numa família de banqueiros
judeus, nobilitada pelos Habsburgo, Lukács sempre mostrou uma grande
pluralidade de interesses – filosóficos, literários, económicos e políticos. E
foi como activista político que fundou o Sonntagskreis (Círculo do
Domingo), uma tertúlia artística e cultural onde aparecem figuras como Bela Bartok,
Arnold Hauser e Karl Mannheim. Lukács converteu-se ao marxismo e aderiu ao
Partido Comunista Húngaro de Bela Kuhn, de que foi Ministro da Educação.
Depois do fracasso de Bela
Kuhn, Lukács escapou para Viena onde conviveu com Viktor Serge e Antonio Gramsci.
Manteve-se na ala esquerda do Partido, escrevendo trabalhos sobre Lenine e
Bukharine, mas as suas teses não mereceram a aprovação da hierarquia soviética
e foi condenado pelos órgãos responsáveis da ortodoxia cultural estalinista.
Nos anos trinta e quarenta passou alguns maus bocados na “pátria dos
trabalhadores”.
Lukács foi talvez o primeiro pensador
marxista a pôr em questão a mecânica socioeconómica como motor da História, e
até a tese “catastrófica” de Marx
Com o fim da guerra, em 1945,
voltou à Hungria comunista e foi um intelectual influente e particularmente
activo nas depurações de intelectuais não-alinhados. Mas, surpreendentemente,
em mais um dos seus volte-face, integrou o governo revolucionário
anti-soviético de Imre Nagy durante a revolta de 1956, sendo depois deportado
para a Roménia. Regressou à Hungria, onde viria a morrer com tranquilidade, ao
contrário de Nagy, que seria fuzilado.
Lukács foi talvez o primeiro
pensador marxista a pôr em questão a mecânica socioeconómica como motor da História,
e até a tese “catastrófica” de Marx – isto é, a ideia de que, no conflito de
classes nascido da industrialização europeia, o capitalismo, com a sua
impiedosa concentração de riqueza, levaria a um desequilíbrio social conducente
a um levantamento maciço dos proletários contra os burgueses. Deste
levantamento resultaria a queda dos governos burgueses e a ditadura do
proletariado. Passada esta fase, viria a utopia libertadora, o tempo em que “o
lobo viveria com o cordeiro” e que nem Governo, nem Estado, nem Estados seriam
necessários.
Mas esta escatologia
materialista, cópia de algumas utopias milenaristas religiosas, fracassou: na
Grande Guerra, em 1914, os operários e os partidos socialistas alinharam com os
governos nacionais. E, entretanto, tinham surgido as classes médias, que punham
em causa o dualismo Burguesia-Proletariado, Ricos e Pobres. Afinal, havia
coisas para além das estruturas económicas e suas consequências sociais e
Lukács é um dos primeiros que o entende. Também se dá conta da persistência de
uma “cultura ocidental” impregnada pelo Cristianismo, mesmo nas suas versões
mais laicas e republicanas, e indissociável da moral sexual, do patriotismo, do
conceito de família e de certos códigos relacionais. Por isso, quando foi
Ministro da Cultura do efémero governo de Bela Kuhn, criou uma disciplina de
educação sexual, destinada a desconstruir as versões tradicionais das relações
entre homens e mulheres.
Apesar das críticas e
condenações de que Lukács foi objecto na Internacional Comunista, a União
Soviética estalinista também iniciou uma campanha de “Correcção Política”,
entendida como o encorajamento de uma série de palavras, expressões e
comportamentos que estivesse de acordo com a teoria do Partido Comunista e com
a sua visão da História e da sociedade, e a interdicção de palavras, actos ou
omissões que pecassem contra o Partido ou contra a ortodoxia comunista. O
pendor eufemístico e de temerosa auto e hetero censura da actual Correcção
Política perante um corpo doutrinário intocável é também tributário deste mundo
de “camaradas”, em que, na expressão, reinavam a igualdade (ainda que, na
realidade, alguns camaradas “fossem mais iguais do que outros”) e a liberdade
(ainda que toda a liberdade que não fosse “ao encontro do que o Partido queria”
tivesse de enfrentar um persuasivo processo “disciplinador”).
Gramsci:
um comunista heterodoxo
António Gramsci foi também um
revisionista crítico da ortodoxia marxista que, não deixando nunca de admirar
Marx, privilegiou o voluntarismo leninista e o papel da vontade humana dos
líderes e dos militantes. Em “La rivoluzione contro Il Capitale”, um
texto que publicou no Avanti em 1917, é a capacidade de saltar etapas
perante uma janela de oportunidade, galgando os “factores objectivos” da
ortodoxia dialéctica marxista, que admira em Lenine, concluindo que a vontade
dos homens é mais importante que os “factos económicos brutos”. Para ele, as
estruturas económicas estão sujeitas à acção transformadora e dinamizadora de
homens que valem especialmente “enquanto são espírito, enquanto sofrem,
compreendem, disfrutam, querem, afirmam ou negam.”
Esta visão idealista,
voluntarista e heterodoxa do marxismo, leva Gramsci a apoiar a revolução
soviética e a ver em Lenine “o maior teórico moderno da filosofia da praxis”.
Mas a crítica gramsciana ao
marxismo ortodoxo nasce também do fracasso do assalto ao Estado em Itália – que
acabaria por ser feito com sucesso, não pelos comunistas, mas pelos fascistas
de Mussolini.
Para Gramsci, os factores que na
“civilização ocidental” impediam uma revolução comunista eram: o Cristianismo;
a Autoridade; a Responsabilidade Pessoal; a Hereditariedade; a Lei; a Verdade;
a Família; o Patriotismo; a Unidade Nacional; a Comunidade; o Conservadorismo;
a Linguagem; a Tradição.
É a partir daqui que Gramsci
revê a importância da cultura dominante na sociedade e na determinação do êxito
da revolução. Enquanto no Oriente europeu – na Rússia – o Estado era tudo, no
Ocidente a chave do sucesso da revolução era a sociedade, a sociedade civil, e
a hegemonia cultural nessa sociedade civil de um conjunto de organismos ditos
privados (sindicatos, partidos políticos, igrejas, editoras, jornais)
comandados por uma “direcção intelectual e moral” dominante. Continuando a
rever criticamente Marx, Gramsci acrescenta que a “superestrutura” ideológica
da sociedade civil e os seus intérpretes, os “intelectuais orgânicos”, eram
decisivos para mudar e comandar a vontade colectiva. Assim, não seria a mudança
na infra-estrutura económica das relações de produção que comandaria a
superestrutura moral ou ideológica da sociedade mas a mudança das mentalidades,
dos conceitos, dos valores.
Para Gramsci, os factores que
na “civilização ocidental” impediam uma revolução comunista eram: o
Cristianismo; a Autoridade; a Responsabilidade Pessoal; a Hereditariedade; a
Lei; a Verdade; a Família; o Patriotismo; a Unidade Nacional; a Comunidade; o
Conservadorismo; a Linguagem; a Tradição. Com um espírito agudo, sempre
crítico, Gramsci via no fenómeno do fascismo um modelo de idealismo voluntarista
semelhante ao socialista mas que se diferenciava dele por procurar enquadrar
esses valores tradicionais.
As “heresias” de Gramsci, que
o Secretário-Geral do PCI, Togliatti, haveria de condenar, foram um importante
contributo para a legitimação e valorização da revolução das mentalidades como
factor decisivo para mudar a realidade; um factor talvez até mais decisivo do
que a conquista do Estado e dos seus poderes materiais de coacção e repressão.
Esta linha crítica ia evoluir
e tornar-se mais consciente depois da queda dos socialismos reais, com o fim da
União Soviética em 1991 e com a revolução pro-capitalista de Deng Xiao Ping na
República Popular da China. Foi quando ganharam força decisiva as várias
teorias dos chamados “marxismos imaginários”, que, na sequência da mensagem
libertária do Maio de 68, pretendiam libertar a utopia do autor de O
Capital dos “socialismos reais” estalinista e maoista.
As teses da hegemonia
cultural de Gramsci voltaram então à ordem do dia; e Gramsci tornou-se leitura obrigatória,
com a proposta da Correcção Política, então já definida pelos seus opositores
como “intolerância disfarçada de tolerância” ou como “um totalitarismo que
elimina qualquer possibilidade de resistência cultural ao progressismo.”
Estes marxistas heréticos
eram heréticos não tanto quanto aos fins mas mais quanto aos meios de converter
as sociedades existentes em sociedades conformes com as utopias do Progresso,
que já vinham da ala esquerda do iluminismo francês, dos chamados “profetas de
Paris” e do próprio Karl Marx. A Razão, a Ciência, a História, todas com letra
maiúscula, estavam do lado dessa marcha para o Progresso, para o Socialismo,
para o que antes fora só a Utopia. E para acelerar o passo, tinha de se domar e
transformar a realidade; e, por fim, a própria natureza humana, através da
mudança cultural.
Mas se na ortodoxia
soviética, leninista ou jadnovista, as relações materiais de produção ditavam a
estrutura social das classes e marcavam as bases do pensamento e das
instituições; e se nos “socialismos reais”, onde o terror e a repressão física
e intelectual eram a regra, os intelectuais funcionavam como intelectuais
orgânicos, como sacerdotes e guardiães de uma ortodoxia ditada pela retórica
dos chefes ou guias políticos, na crítica gramsciana Maquiavel parecia vir
substituir Marx e Lenine.
E Maquiavel, com a sua finesse florentina,
entendia que dominar o pensamento, a cabeça e a linguagem era o modo mais
eficaz e duradouro de transformação social; talvez mais lento e mais indirecto
do que a força, mas mais eficaz e duradouro. É também disso que nos falam as
reflexões do autor de O Príncipe sobre “os leões e as raposas”, as
alternativas da força e da astúcia.
A
transição teórico-prática: Marcuse
Um dos marxistas da Escola de
Frankfurt que emigrou para os Estados Unidos depois da subida de Hitler ao
poder, em 1933, foi Herbert Marcuse. O Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt tinha-se instalado em Nova Iorque, apoiado pela Universidade de
Columbia, e ao contrário da maioria dos seus colegas emigrados, que regressaria
à Alemanha depois da guerra, Marcuse acabaria por ficar nos EUA. Ele que nos
anos 30 insistira já na necessidade de “libertação sexual”, nos anos 50
reformularia a teoria da revolução: esta não viria da classe operária (a classe
operária americana, além de estar a passar a classe média era patriota, tinha
valores conservadores e era impermeável ao comunismo) mas de uma coligação de
minorias perseguidas, marginalizadas e esclarecidas: “os negros, as mulheres
feministas, os homossexuais e os estudantes”.
Para Erich Fromm, um dos progenitores da
ideologia de género, o “operário americano”, sendo “um dos mais conservadores
ou até reaccionários elementos da sociedade americana”, tendia a “parar o
progresso”.
Nesta linha de pensamento, é elucidativa
a opinião de um outro marxista de Frankfurt, Erich Fromm, um dos progenitores
da ideologia de género, para quem o “operário americano”, sendo “um dos mais
conservadores ou até reaccionários elementos da sociedade americana”, tendia a
“parar o progresso”. Daqui e da oposição destes grupos minoritários, nos anos
60, à guerra do Vietname, nasceria a Nova Esquerda, aberta a todas as correntes
de esquerda radical, mas recomendando intolerância absoluta em relação às
forças de direita. Contra a direita, e dada a dificuldade de a reprimir por via
democrática, tudo era válido.
Foi destes pensadores que
derivou a moderna Correcção Política que, fundamentalmente, propõe a
substituição da versão “económica” do marxismo por uma versão “cultural”.
Perante o fracasso, nas sociedades ocidentais, de uma revolta do tipo
bolchevique – que, na reacção e pelos mesmos métodos violentos, levara às
vitórias do fascismo em Itália (1922) e do nacional-socialismo na Alemanha
(1933), bem como à derrota das forças de esquerda na Guerra Civil de Espanha –
surgiu uma teoria inteiramente nova da sociedade e da transformação social.
A
América e a nova Correcção Política
A Correcção Política segue
velhos temas da esquerda radical, como a superioridade (se não o monopólio)
moral e intelectual das esquerdas e o internacionalismo, que agora encontra na
globalização económica e no grande capital mundialista aliados tácitos e
tácticos. É a partir desta suposta superioridade moral e intelectual que os
adeptos da Correcção Política definem os pensadores e os políticos
conservadores ou meramente independentes como “personalidades autoritárias”,
“fascistas” ou mesmo “nazis”, enquanto escalpelizam injustiças ou situações
históricas (geralmente banidas ou ultrapassadas, até por iniciativa e força de
personalidades conservadoras) para identificar e culpabilizar agressores, que
responsabilizam retroactiva e transgeracionalmente.
Embora o movimento tenha surgido do desejo
de eliminar os restos do racismo, sexismo e ódio, está a substituir velhos
preconceitos por novos. E a declarar certos temas proibidos, certas expressões
proibidas, até certos comportamentos e gestos proibidos.
Foi há trinta anos, no
rescaldo da Administração Reagan e do fim da União Soviética, que os
Correctores iniciaram a sua luta nos Estados Unidos e, mais timidamente, na
Europa. Dando-se conta do fenómeno, já em 1991, o sucessor de Reagan, George H.
Bush, declarava na Universidade de Michigan:
A ideia de correcção política
desencadeou a controvérsia no país. E embora o movimento tenha surgido do
desejo de eliminar os restos do racismo, sexismo e ódio, está a substituir
velhos preconceitos por novos. E a declarar certos temas proibidos, certas
expressões proibidas, até certos comportamentos e gestos proibidos.
A maioria das grandes
universidades aceitou acriticamente a ofensiva, fez o mea-culpa e
pediu perdão. Deixou de haver debate livre sobre as questões fracturantes e
houve uma progressiva rendição em toda a linha aos novos padrões de afirmação e
de controlo. Símbolos, conceitos, opiniões, até estátuas foram removidos, numa
purga iconoclástica e numa contrita confissão de culpa perante a nova
inquisição.
Daqui resultou uma ausência
de confrontação, um clima de medo, suspeição, denúncia e perseguição aos
professores e alunos que não se conformassem ou não se integrassem nos códigos
e no mundo a preto e branco da Correcção Política. A identificação de macro e
micro agressões a minorias vitimizadas e a acusação subsequente contra
prevaricadores e renitentes passou a ser um trabalho a tempo inteiro. Perante a
reparação e a rescrita do passado – um tema central de George Orwell em 1984 –
e as apertadas malhas da censura presente, o próprio Barack Obama não pode
deixar de comentar, a propósito da academia norte-americana, que “a cultura de
esquerda nas universidades se tinha tornado profundamente intolerante em
relação a pontos de vista contrários”.
Entre as palavras banidas nos Estados Unidos
está, por exemplo, a palavra “black”, ainda que Martin Luther King a tenha
usado com orgulho; e “oriental”, ainda que o académico de esquerda Edward Said,
no seu livro Orientalism, a tenha usado para denunciar a orientalização
dos orientais pelos ocidentais.
A lógica da Correcção
Política é uma lógica maniqueísta de vítimas e agressores, imposta por
orientações e grupos ditos perseguidos, marginalizados ou desconsiderados ou
pelos seus autoproclamados representantes ou “comissários políticos”.
Reporta-se, não só ao presente, mas ao passado, numa espécie de conta-corrente
sem limite de início e de termo. O capital de vitimização e culpabilização é
potencialmente infindável e infinitamente elástico e a victimologia,
capitalizada politicamente, tornou-se uma ciência e gerou uma ética. O
“activismo” passou também a ser urgente: todo o cidadão é um potencial
“informador”, instigado a documentar, a gravar e a reportar agressões a
“minorias” por parte da “autoridade” (polícias ou professores), da
“extrema-direita” (a não esquerda), ou da “sociedade racista, sexista e
não-animalista” (o povo tradicional, os “populistas” ou o incauto cidadão).
Entre as palavras banidas nos
Estados Unidos está, por exemplo, a palavra “black”, ainda que Martin Luther
King a tenha usado com orgulho; e “oriental”, ainda que o académico de esquerda
Edward Said, no seu livro Orientalism, a tenha usado para denunciar a
orientalização dos orientais pelos ocidentais. Não podem usar-se pronomes num
só género, e até pelas praias lusófonas há já algumas soluções inovadoras, como
as da brasileira Marcia Tiburi que no livro Feminismo em comum para todas,
todes e todos (Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 2018) propõe que se
junte um novo não-género mais inclusivo aos dois limitativos géneros do
costume.
A Correcção Política tomou
conta de tudo, das críticas literárias de revistas, como a New York Times
Book Review ou a London Review of Books, aos prémios literários, às
temáticas dos colóquios ou aos discursos dos prémios cinematográficos.
E a indoutrinação das novas
gerações está já em marcha: à semelhança do que a Warner Brothers tem vindo a
fazer, no canal Disney Plus alguns clássicos foram banidos e os que não o foram
apresentam-se com o aviso de que contêm preconceitos étnicos, raciais ou
sexuais explícitos, preconceitos esses que só se reproduzem no original para
que se não diga que nunca existiram. Quanto às novas produções, seguem na letra
e no espírito a agenda Correcta, que, infalivelmente, molda a história e as
personagens. Note-se o “empoderamento feminino” das novas princesas
ensimesmadas e vingativas da Disney, cujo sofrimento passado e o “conflito
interior” justificam quaisquer acções malévolas. Numa progressiva cedência à
pressão dos media progressistas e da comunidade LGBT, o filme Onward, que
estreou este mês, oferece, e aqui sem aviso, homossexualidade explícita
(“finalmente” ao alcance dos pequenitos). E quem tenta levantar reservas a esta
vitimização ou à sua manipulação é encaminhado para a fogueira dos homofóbicos,
dos racistas, dos nazis.
Na libérrima América, cuja
Constituição garante numa das suas principais emendas a liberdade de expressão;
nessa mesma América, que, afinal, é também a América do puritanismo e da caça
às bruxas, a linguagem é hoje mais controlada do que na Espanha da Santa
Inquisição (basta ler, para o efeito, Quevedo ou Cervantes). A divulgação da
cultura da “ofensa” leva a acusações cruzadas e a uma autocensura doentia que
isola, cala e guetiza tudo e todos – até o humor.
Mas a utopia e a bondade do
“ideal” de uma humanidade livre, igual e fraterna – e agora ainda mais
inclusiva, até inter-espécies – mantém-se e dilata-se. Os animais humanizam-se
e o planeta, o planeta que sofre, é agora, também ele, dotado de emoções,
sentimentos e afectos. Explorando a veneração e a submissão dos media e
dos políticos às chantagens da “juventude”, do ambiente e das grandes comoções,
a jovem Greta Thunberg tornou-se símbolo e líder da luta contra um
catastrofismo climatológico apresentado como um dogma mas de polémica
cientificidade.
No entanto, e mais uma vez,
como o melhor e o pior da natureza humana acaba sempre por resistir e
persistir, há pessoas, instituições e valores “menos iguais que os outros” e
que se podem e devem ofender à vontade: precisamente as pessoas, instituições
ou valores que, para a velha ortodoxia marxista, eram as pedras na engrenagem:
a Religião, sobretudo a religião cristã e entre as religiões cristãs, a
católica (O Islão é tratado com mais cuidado, até porque exerce represálias em
espécie); a família tradicional; os burgueses; o mundo rural reaccionário,
herdeiro dos velhos camponeses refractários ou por doutrinar.
E
a Europa?
A Europa é menos ou mais
politicamente correcta que os Estados Unidos? Digamos que é tão correcta como
os Estados Unidos mas de outra maneira. No Parlamento Europeu, a revolução
semântica, uma etapa crucial da estratégia, está já em marcha com a mudança de
expressões como “mankind” ou “manpower” para “humanity” e “staff”.
Em França há resistências, ou
há pelo menos uma forte polémica em volta do “politiquement correct”, com
pensadores como Michel Onfray e Alain Finkielkraut, Éric Zemour ou o escritor
Michel Houellebecq a denunciar em livros, artigos e entrevistas a ditadura
intelectual bem-pensante que faz o controlo do pensamento e da palavra.
Houellebecq é particularmente provocador nos seus romances, traçando um retrato
distópico da França pós-moderna, decadente e submissa às novas tiranias da gauche
caviar ou do Islão activista.
São muitos os autores
europeus que consideram a Correcção Política um fenómeno tipicamente americano
e pouco susceptível de se instalar nas sociedades europeias, pelo menos de
forma igualmente moralista e populista. Mas há factos que vão revelando que tem
vindo a alastrar e a instalar-se na Europa, por moda e importação, sobretudo,
como previra Marcuse, através dos chamados “mandarins” dos media ou
intelectuais sistémicos, que os políticos (quase todos, mas não todos) têm medo
de enfrentar.
Por cá as causas fracturantes
da Correcção Política, e causas de vida ou de morte, são negociadas para passar
orçamentos, como se de ninharias se tratassem. E as denúncias de racismo,
directamente importadas dos Estados Unidos sem qualquer adaptação à nossa
realidade, são mais um sinal das trágicas e mortíferas cópias servis que nos
vão caracterizando.
Se a linguagem é
indissociável do poder, como já defendiam Michel Foucault e Roland Barthes nos
anos 60, é elucidativa e sintomática a evolução dos termos ou a sua progressiva
purga com vista a uma maior pureza ideológica,
A Europa mostra também
diferenças em termos de penetração da Correcção Política, sobretudo entre a
Europa Ocidental e a Europa Oriental. Afinal, é de “marxismo cultural” que se
trata, e os povos do Leste, que viveram com o domínio oficial do marxismo,
estão especialmente habilitados para o detectarem e são naturalmente mais
sensíveis e refractários à nova táctica de agressão e domínio.
E se a linguagem é
indissociável do poder, como já defendiam Michel Foucault e Roland Barthes nos
anos 60, é elucidativa e sintomática a evolução dos termos ou a sua progressiva
purga com vista a uma maior pureza ideológica, por exemplo, quanto à
deficiência física: o invalid passou primeiro a handicapped e
depois a disabled; e de disabled, que ainda implicava um qualquer
padrão de normalidade em falta, passou ao mais tolerante diferently abled ou phisically
challenged. Assim, espera-se que, pelo poder da palavra, o “cidadão portador de
deficiência” aceite a sua diferença como uma carga exterior, um desafio ou um
“salvo-conduto” de que é “portador”.
Mas os grandes progressos da
Correcção Política foram na área da chamada Ideologia de Género. A tendência em
ascensão, sobretudo nos países nórdicos, propõe que se reavalie o que “era” uma
determinante natural e biológica – o sexo masculino ou feminino –, depois
“encorajado e condicionado pela sociedade patriarcal”, e se reconsidere o
“género” ou os “géneros” como uma “opção livre”, tomada a partir da idade da
razão. Até lá, as crianças deverão ser educadas na indefinição e “sem
condicionalismos”.
Esta libertação da biologia é
claramente inspirada no “subjectivismo sexual” de alguns mentores da escola de
Frankfurt. É também uma decorrência da sartriana “precedência da existência
sobre a essência” ou uma radicalização da famosa expressão de Simone de
Beauvoir de que “não nascemos mulheres, mas tornamo-nos mulheres”. Na escalada
desta indeterminação natural e determinação cultural, sem bases científicas mas
avançada em nome da Ciência e do Progresso, legitimam-se todas as opções
patológicas, até as mutilações operadas cirúrgica e irremediavelmente,
independentemente das suas causas e consequências traumáticas.
O que começou por ser parte
de uma contra-cultura marginal é hoje uma quase ortodoxia institucional; pelo
menos na simplista retórica dominante, apresentada populisticamente como
percepção do futuro e sancionada ou em vias de sancionamento como doutrina
oficial em vários países europeus e na ambiguidade de grandes organizações.
Termino com as palavras de um
grande pensador, talvez o mais interessante e articulado pensador politicamente
incorrecto do nosso tempo, e que nos deixou recentemente – Roger Scruton:
Uma vez identificados como de
direita, passamos a estar fora do admissível: as nossas opiniões são
irrelevantes, a nossa personalidade é desacreditada, a nossa presença no mundo
passa a ser um erro. Não somos oponentes numa discussão, mas uma doença a
erradicar. Esta tem sido a minha experiência.
Penso que esta terá sido
também já a experiência de muitos os que me lêem. Mas não nos deixemos
impressionar ou intimidar, não nos sintamos obrigados a apresentar desculpas ou
a desistir. Até porque a Correcção mata o pensamento e o tempo de pensar
crítica, criativa e livremente chegou para os incorrectos.
Nota: Este
texto foi apresentado no dia 10 de Março na 2ª Convenção da Europa e da
Liberdade, organizado pelo Movimento Europa e Liberdade, no painel “A ditadura
do politicamente correcto e o domínio cultural da esquerda radical”.
Um
dos painéis seguintes, que teve como titulo “A manipulação da esfera pública e
o papel da comunicação social”, poderia ter partido da reportagem da Liliana Borges no Público de
11 de Março sobre a sessão em que participei. Um excelente exemplo.