Dia 1, foi dia de Todos os Santos, dia em que lembramos os santos visíveis, mas sobretudo os invisíveis – os muitos que passaram por esta vida fazendo discreta e anonimamente o bem sem que a História, a Hagiografia ou esta nossa “realidade desfocada” os reconhecesse e os nomeasse.
Helena Matos muito justamente, a expressão “realidade desfocada” – ou mais precisamente “a demagogia desta realidade desfocada que estamos a viver” – a propósito de vítimas invisíveis ou que a demagogia torna invisíveis por estarem do lado errado da História. E lembrou Tiago, o motorista do autocarro incendiado em Loures.
Tem havido nestes dias, por cá, muitos “invisíveis”, vítimas de uma estranha conspiração de silêncio em que por equivocada estratégia de pacificação, alinhamento ideológico ou maniqueísmo fundamentalista, têm entrado os que têm o dever de nos informar.
O motorista do autocarro incendiado, os passageiros esfaqueados, os donos dos carros queimados são quase tão invisíveis e silenciados como os “jovens encapuzados” ou como os atiradores dos cocktails molotov que vão causando os distúrbios como que vindos do nada. Parece que há vítimas boas e vítimas más, carrascos bons e carrascos maus, conforme a causa, a ideologia, a etiqueta que se lhes vai colando.
É assim a narrativa quotidiana desta nossa “realidade desfocada” que tende a obedecer ao dogmatismo instalado, multiplicando as vítimas dos “maus” e ocultando as vítimas dos “bons”.
Os invisíveis da História
Há sempre dois (ou mais) lados na História, mas, entre nós, tem havido um lado com vítimas mais invisíveis. Tem sido assim desde o passado longínquo: os católicos e a Inquisição são acusados de grandes mortandades (em Portugal morreram 1200 pessoas em Autos de fé, em duzentos anos), porém, aparentemente, os católicos mortos pelos protestantes não existem. E morreram muitos, sobretudo na Inglaterra dos Tudor, a começar por São Thomas Moore, passando pelos massacres dos suecos de Gustavo Adolfo na Baviera, na guerra dos Trinta Anos, ou pelos dos puritanos de Cromwell na Irlanda católica.
Em nome da Democracia, da Liberdade e da Igualdade, os Marat, os Robespierre, os Fouquer-Tinville, os Carrier, prenderam, torturaram, guilhotinaram, afogaram muitos milhares de pessoas de todas as classes em França. E os republicanos franceses foram os pioneiros do genocídio contra os camponeses católicos da Vendeia.
Os crimes do nazismo e as barbaridades em nome da raça e da nação alemãs são crimes, são imperdoáveis e estão mais que estudados, historiados e ficcionados, como é devido. Em contrapartida, os crimes do comunismo, na Rússia de Lenine e Estaline, na China de Mao Tsé-Tung, na Europa Oriental, no Cambodja dos Kmers Vermelhos, são tendencialmente ignorados, branqueados, tornados invisíveis. E há cidadãos acima de toda a suspeita, como alguns dos lusos subscritores do recente Manifesto Vida Justa, que são, ou pelo menos foram e já em idade adulta, admiradores confessos das grandes figuras do socialismo que dirigiram a prática destes crimes.
Há uma explicação: é que os crimes dos comunistas e do comunismo – e em geral todos os crimes da Esquerda – são feitos em nome de ideais considerados superiores: a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, o Socialismo, a Nova Humanidade, a promessa de uma Vida Justa. Muitos destes valores, de resto, são trágicas e apressadas corruptelas de valores cristãos, como os do Sermão da Montanha.
O facto de estes paraísos na terra ou a sua promessa terem gerado realíssimos infernos, matando e vitimando mais almas do que as exterminadas por Hitler, permanece praticamente invisível ou é considerado o irrelevante dano colateral de um “imorredoiro ideal”. E no entanto, somando todos estes paraísos na terra, com o Holodomor ou a fome na Ucrânia e as campanhas agrícolas de Mao Tsé-Tung do “Grande salto em Frente”, chegamos facilmente aos 100 milhões de vítimas “invisíveis”; o equivalente, contabilisticamente, a vários holocaustos. Frank Dikötter, com base nos arquivos do Partido Comunista Chinês, fixou em 45 milhões o número de vítimas da Grande Fome da China, com múltiplos casos de canibalismo nas aldeias.
Os que não deixam ver
Os grandes media ainda são, por agora, quem dá e tira visibilidade a vítimas e carrascos, mas a realidade desfocada que nos mostram torna-se cada vez mais evidente.
Na América, a consciência pública desta demagógica desfocagem é crescente. Num inquérito da Gallup deste ano, a confiança dos americanos na imparcialidade dos mass media – jornais, TV e rádio –, baixou de 72% em 1976 para 31% em 2024, sendo a desconfiança total (“no trust at all”) de 36% e a relativa desconfiança (“not very much confidence”) de 33%.
Foi Jeff Bezos, proprietário do Washington Post desde 2013, que citou este inquérito para lembrar que a fé da população nos jornalistas caiu de tal forma que o último lugar da fiabilidade deixou de ser dos políticos. E acrescentou no Washington Post de 28 de Outubro: “o Post e o New York Times ganham prémios mas falam cada vez mais para uma pequena elite, para si mesmos”.
Quando Bezos, talvez por boas e más razões, se recusou a fazer o endosso oficial do jornal à candidatura de Kamala Harris para presidente, 8% dos assinantes cancelaram a assinatura e vários colunistas saíram em sinal de protesto.
De qualquer forma, com ou sem endosso oficial, o apoio do Washington Post ou do New York Times a Kamala Harris contra “o mal absoluto”, o próprio Hitler (sem que as vítimas passadas e presentes das utopias e narrativas que a dupla democrata de facto secunda sejam sequer referidas ou ganhem qualquer visibilidade), nunca foi segredo para ninguém; muito menos para os inquiridos que expressaram a sua desconfiança na imparcialidade dos grandes media e dos jornalistas em geral. Ainda assim, e porque nos Estados Unidos os media são, tradicionalmente, politicamente alinhados, trata-se ali, geralmente, de uma desfocagem da realidade mais ou menos declarada.
Aqui não, aqui a lente é teoricamente exacta e a “montra” neutra, isenta e objectiva – talvez por isso a desfocagem seja ainda mais demagógica e a invisibilidade de algumas vítimas, carrascos e realidades mais densa.