Batalha de Aljubarrota:
desde o planeamento ao campo de batalha
Aos pregões por Dona Beatriz respondiam abertamente: “De quem for oreino, levá-lo-á.” Se se rompesse a linha de sucessão tradicional, esses fidalgos tinham o seu candidato ao trono: Dom João de Castro, filho mais velho do rei Dom Pedro e de Inês de Castro, que ao tempo se encontrava em Castela, e que Juan I mandara de imediato prender, por se acaso... Aos primeiros sinais de descontentamento e resistência, Juan I invadiu Portugal. Ao atravessar em modos de guerra a fronteira, rasgou o tratado de Salvaterra de Magos. A partir daí, valia tudo. À regente, a rainha viúva Leonor Teles, e à sua filha Beatriz, com Juan I a seu lado, juntavam-se as candidaturas ao trono de Dom João e Castro, do seu irmão Dom Dinis de Castro (em cujo túmulo uma inscrição rezava “Aqui jaz Dom Dinis II”) e, mais tarde, do Mestre da Ordem de Avis, também João de seu nome, filho ilegítimo de Dom Pedro e por isso meio-irmão do rei Dom Fernando e dos Castro. Herói improvável da conjura palaciana para matar João Fernandes Andeiro, convertera-se depressa no favorito do povo de Lisboa, sempre com os mesteirais à frente, depois do Porto, de Évora... Os mercadores e as elites mais ricas, que tinham muito a perder, não se mostravam inclinados a apoiar uma aposta claramente perdedora. Porém, devidamente pressionados pela “arraia-miúda” e pelos artesãos das principais cidades, acabaram por apoiar a causa do Mestre de Avis. E a guerra avançou. Numa primeira batalha na fronteira alentejana, na herdade dos Atoleiros, na qual Nuno Álvares Pereira, nomeado condestável de Portugal pelo Mestre de Avis, proclamado numa assembleia popular, na capital, como “Regedor e Defensor do Reino”, venceu a hoste castelhana: a primeira vez na história do reino em que um comandante mandou a cavalaria desmontar e combater a pé, e venceu.
A BATALHA DE ALJUBARROTA. É talvez a ilustração mais reproduzida nos manuais de história em Portugal. Esta miniatura das Crónicas de Jean de Wavrin é do séc. XV.
Uma vez começadas, as batalhas raramente seguem o guião que os estrategos traçaram para elas, mas a batalha que teve lugar no campo de São Jorge desenrolou-se quase como a prepararam Nuno Álvares Pereira e Dom João I. (Luís Miguel Duarte)
Esta era uma daquelas batalhas de tudo ou nada, em que se decidia a independência de Portugal. Daquelas batalhas de que não há recuperação possível e que, por isso, os estrategos tentam evitar, só aceitando travá-las em situações de desmedida confiança (assim se sentia o exército de Juan I de Castela) ou de desespero (em parte o estado de espírito a situação dos portugueses). Como se chegara aqui? Como tantas vezes, por um problema de sucessão dinástica. Dom Fernando, o nono rei da primeira dinastia de Portugal, dita de Bolonha, tomou algumas excelentes medidas de governo (no fomento económico, na regulação social, mantendo o avultado tesouro régio que lhe deixara seu pai, repartido por várias torres de vários castelos do reino). Mas talvez porque o coração tem razões que a razão desconhece, forçou um casamento inconveniente e indigno de um rei (com a mulher de um vassalo seu), alienando muitas simpatias do povo e o respeito de numerosos vassalos. Pior do que isso: envenenado pelo círculo de exilados castelhanos da facção perdedora da “Guerra dos Trastâmaras”, deixou-se convencer que tinha legítimas pretensões à Coroa de Castela (e algumas tinha) e fez sua a missão de expulsar desse trono o “usurpador” Henrique, que matara à traição o seu irmão Pedro. Seguiu-se uma longa guerra com Castela, ritmada por três períodos de invasões mútuas, das quais Portugal saiu quase sempre muito mal. E assim, do céu em que Fernão Lopes converteu os primeiros anos do seu reinado, por um mau casamento e ambições políticas deslocadas, desfeitas em batalhas terrestres e navais, depressa se passou ao inferno: Fernando morreu sozinho, talvez envenenado, com uma mulher que o traía com um fidalgo galego, como era público e notório, num reino economicamente devastado e militarmente exangue.
Sem descendência masculina. A sua única filha, Beatriz, com quem haveria ele de casá-la, para garantir desde logo a sobrevivência física da menina (as crianças morrem e, se atrapalharem muitos planos, morrem ainda mais…) e ao mesmo tempo a independência do reino? Talvez com o seu inimigo, Juan I, rei de Castela.
Dom Fernando sentia-se doente e sozinho, impopular, militarmente vencido. E o único partido em quem lhe pareceu poder confiar para proteger a filha, foi o rei castelhano que se converteu automaticamente em “amigo próximo” e aliado de longa data. O Tratado de Salvaterra de Magos, de 2 de Abril de 1383, que formalizava o casamento e esclarecia as condições, foi uma tentativa de salvar os dedos e um ou outro anel. Começava com uma exigência clara: os reinos de Portugal e de Castela nunca podiam ser unidos. No melhor cenário, Leonor Teles ficaria como regente até que o primeiro filho varão de Beatriz e Juan I fizesse 14 anos. Havia depois um clausulado intermédio que previa diversas situações, que Dom Fernando terá ponderado com o siso possível e os conselhos disponíveis, a melhor, e talvez a única maneira, de proteger a filha e garantir a independência de Portugal. Visto por nós, hoje, o tratado parece a receita para o desastre.
Assim que Dom Fernando, deformado pela doença e regressado a Lisboa num cortejo já quase fúnebre, a meio da noite, às escondidas, faleceu, foram rápidos os que apareceram a cavalo pelas cidades e vilas a proclamar “Arraial por Dona Beatriz, rainha”. As reacções não foram as esperadas. As camadas populares odiavam Leonor Teles e o seu amante, João Fernandes Andeiro. Os mesteirais, sobretudo os de Lisboa, cujas ambições profissionais e políticas tinham sido reprimidas pelo sangue, tinham contas a ajustar com a rainha viúva e a memória dos companheiros mortos e infamados, eles e suas famílias, para reabilitar.
A nobreza encontrava-se dividida, num processo que, como explicou o historiador José Mattoso, vinha já, pelo menos, do reinado de Dom Afonso IV (1325-1357): algumas famílias castelhanas como os Castro e os Teles de Meneses, açambarcavam os seis escassos títulos existentes à época, mas outras, descontentes com o predomínio na corte dos exilados castelhanos e dos validos de Leonor Teles, não aceitariam a transição apregoada sem resistência.
Um mito ressonante: a padeira de Aljubarrota. A saga da famosa padeira responsável pela morte de sete, oito ou nove castelhanos (consoante as versões mais populares) só foi fixada em texto cerca de dois séculos e meio após o confronto de 1385. Como todos os mitos, este episódio teve diversas funções. É provável que, no século XV, a história de uma só figura batendo-se em inferioridade numérica servisse para exaltar o feito do exército comandado por Nuno Álvares Pereira. Talvez até corresse na região anos mais tarde, ganhando pormenores e brilho sempre que a independência do reino parecia estar em causa. É certo, porém, que só foi fixada em texto em 1642 pelo monge Francisco Brandão, que a ouviu na zona de Aljubarrota. Alexandre Herculano investigou as origens do mito no século XIX e alimentou-o, embora não desse por provada a realidade do episódio. No século XX, nos manuais de história do Estado Novo, o episódio era contado sem particular espírito crítico, exaltando as virtudes da luta de um exército contra o mundo. De concreto, sabe-se apenas que existiu, anos depois da batalha, uma padeira em Aljubarrota, de mau feitio e aparência rude. Chamava-se Brites de Almeida.
José Mattoso fundamentou uma conclusão: o que acontece em 1383-1385 em Portugal é sobretudo uma divisão profunda na nobreza, fruto de uma “reorganização” dos seus quadros que vinha de trás e criara profundos antagonismos e clivagens. Não foi uma revolução popular nem patriótica. Concordamos, mas não desvalorizaríamos tanto opapel desempenhado nos acontecimentos pela arraia-miúda e pelos demais estratos do povo. Foram os mesteirais e o povo de Lisboa que “empurraram” o Mestre de Avis para “Regedor e Defensor do Reino”. Foram eles e o povo-miúdo, de Lisboa e do Porto que, pela violenta ameaça física, obrigaram as elites mercantis a apoiarem acausa do Mestre, a contragosto. Foram os mesteirais, porque tinham treino militar, que dirigiram os ataques populares às alcáçovas, sobretudo nas terras alentejanas em que o alcaide-mor estava por Dom Beatriz e a população da terra pelo Mestre. Foram os grandes mercadores (o caso dos do Porto está bem documentado) que praticamente pagaram a guerra do futuro Dom João I: satisfazendo as exigências de alguns nobres deselegantemente venais, custeando a vinda dos mercenários ingleses que seriam decisivos em Aljubarrota.
Se nada do que aconteceu teria acontecido sem as profundas divisões entre os nobres e na corte, o mesmo se pode afirmar da participação do Terceiro Estado. Aliás foi o povo comum de Lisboa, devidamente manipulado por uma pequena conspiração de fidalgos e de um veterano do serviço régio, que praticamente “elegeu” na rua como candidato ao trono o Mestre de Avis, para gáudio dos que tinham encenado essas manifestações.
A “bagagem” dos dois exércitos
Quando se chega ao momento da batalha, é costume abstrair-nos de tudo o que, entretanto, se passou e concentrarmo-nos apenas no dia 14 de Agosto de 1385 no campo de São Jorge. Porém, as duas forças situadas no terreno, prontas para iniciar o confronto decisivo, traziam atrás de si uma significativa “bagagem”, no sentido do moral das tropas e do “histórico” desta guerra específica.
Os castelhanos (com os seus aliados franceses, gascões e, nunca o esqueçamos, muita da melhor nobreza de Portugal) foram chegando aos magotes, exaustos por um dia de marcha sob o pior calor de um Agosto no centro dopaís, depois de muitosdiasde marcha. Tendo em conta que a concentração para a “grande invasão” começara em Janeiro, alguns soldados estavam em campanha havia cerca de seis meses, com o brutal desgaste associado. O papel de Juan I era decisivo devido à heterogeneidade do seu exército, mas o rei deslocava-se agora numa liteira: atacado pela malária, imaginamo-lo com febre, sem forças, a passar a pior das mensagens para os seus combatentes. Em 21 de Julho (pouco mais de três semanas antes da batalha), detém-se em Celorico da Beira e, enquanto mais tropas se lhe juntam, o rei faz o seu testamento. Nada há de anormal no gesto: os reis, os príncipes, os cavaleiros deviam prevenir-se com um documento destesantesde partirempara a guerra. Fizeram-no tranquilamente o infante Dom Henrique e o infante Dom Fernando, seu irmão mais novo, antes da desastrosa tentativa de conquistar Tânger, em 1437.
O cerco de Lisboa. Poderia não ter existido Aljubarrota se um ano antes, em 1384, o cerco de Lisboa tivesse conduzido à rendição da capital do reino. O exército castelhano esteve prestes a obter a capitulação das forças exaustas e sem mantimentos da cidade, mas um surto de peste provocou danos nos dois contingentes e apressou a retirada castelhana. Lisboa, na ocasião, foi salva pelo mais improvável dos aliados: a doença contagiosa.
Acontece que neste caso não estávamos perante uma simples precaução “administrativa”: Juan I estava bastante doente. Se a hoste portuguesa tinha dois bravos chefes militares, Dom João I e Nuno Álvares, na castelhana não se destacava nenhuma segunda figura. Igualmente negro era o tal “histórico” castelhano: em 1384, Juan I montara um poderosíssimo cerco terrestre e naval a Lisboa. O arraial foi comparado a uma cidade, com ruas de tendas até de artigos de luxo. Almada sofreu mais do que o humanamente possível e, no fim, capitulou. Lisboa aguentou-se além do expectável, graças à determinação dos defensores e dos habitantes em geral, mas mais ainda graças à magnífica muralha que Dom Fernando, tantas vezes apontado como o responsável por todas as desgraças que se abateram sobre o seu reino, mandara construir. É quase certo que, sem ela, Lisboa (e Portugal) teriam caído sob esse primeiro cerco. É verdade que a chegada da frota de naus e de galés do Porto dera aos lisboetas um poderoso reforço anímico, mas na prática o resultado foi nulo: Lisboa precisava de comida e de água, mais do que de combatentes, e estes chegados do Porto significavam mais bocas a alimentar. Com a rendição à vista e com ela o fim anunciado da independência portuguesa, foi uma erupção brutal de “peste” que derrotou os castelhanos. Nunca saberemos quantos combatentes morreram ao certo, mas a lista de fidalgos de topo que a doença vitimou é impressionante (Dona Beatriz chegou a ter uma ameaça de contágio).
Quando a vitória total estava à vista, os castelhanos retiraram com muitas baixas e, sobretudo, baixas irrecuperáveis em “homens de armas” experientes, ricos e prestigiados. Na primeira batalha formal entre a hoste de Nuno Álvares Pereira e uma força castelhana, o comandante português experimentou pela primeira vez em Portugal combater com os cavaleiros apeados (“a primeira vez que se pôs pé em terra”, dirá o cronista) e venceu. Não foi uma batalha decisiva, mas os portugueses viram como podiam triunfar sobre os castelhanos; e estes, já desfalcados de chefes militares de peso, perderam alguns mais.
Seguiu-se outro episódio negro para as cores de Castela. Uma tropa comandada por alguns fidalgos de valor decidiu invadir e saquear a Beira: entrou em Portugal e, enquanto quis, acumulou prisioneiros, gado e todo o tipo de riquezas a que conseguiu deitar a mão. Preparava-se para regressar a Castela, “gorda” do espólio e lenta, quando uma coligação de fidalgos da Beira (resolvidas as delicadas questões de precedência sobre quem manda em quem) decidiu sair-lhe ao caminho. Foi mais um recontro regional, típico das razias fronteiriças. Nuno Álvares Pereira e Dom João I nada tiveram que ver com o caso. Mas os portugueses infligiram uma humilhação aos castelhanos e recuperaram, com juros, tudo o que lhes fora roubado. E a sangria entre os comandantes castelhanos acentuou-se.
Juntemos a tudo isto duas notas: seria interessante saber mais sobre o ritmo e a eficácia do processo de recrutamento do exército castelhano. O reino era imenso e uma chamada às armas podia ser complicada, sobretudo se a causa não fosse popular. Sabemos que no início de Janeiro de 1385, em Talavera de la Reina, Juan I escreve à cidade de Múrcia a convocar um certo número de lanceiros e de besteiros desta cidade e a meter-lhes pressa. E que no final de Abril, na mesma localidade, o rei volta a escrever a Múrcia, quase a perder a paciência, porque os soldados que requisitara não tinham aparecido. Quatro meses. Não parece descabido imaginar que problemas semelhantes tenham ocorrido noutras paragens, atrasando a formação do exército invasor e corroendo a sua homogeneidade.
Por último, em Julho, chegaram a Portugal embarcações carregadas de combatentes ingleses, sobretudo arqueiros, mas também lanceiros, que dois embaixadores portugueses tinham sido autorizados a recrutar em Inglaterra, pelo rei Ricardo II, como mercenários – num total de seis a sete centenas. Chegaram ao Porto, a Setúbal e a Lisboa. A armada castelhana, em particular as galés, tentou quanto pôde impedir o desembarque: teve lugar uma pequena, mas dramática “batalha naval”, com semelhanças com a que ocorrera em 1384, quando a armada de socorro do Porto conseguiu chegar a Lisboa. Uma vez mais, com um final feliz para os ingleses, portanto para os portugueses, e uma derrota, sobretudo psicológica, para os castelhanos.
Tudo isto somado só podia causar danos ao moral das tropas invasoras, à sua capacidade logística e, sobretudo, ao seu comando, que chega a Aljubarrota quase decapitado.
Do lado português, passava-se o contrário: dois bons líderes militares, muito próximos entre si, embora nem sempre de acordo; um exército razoavelmente coeso e disciplinado, dentro das suas diversas componentes, muito reforçado pelo contingente dos ingleses que, não sendo numerosos, eram experientes e tacticamente bem treinados, como se veria. Os portugueses, sem podermos falar de patriotismo (este “sentimento” começaria aliás por esta altura a revelar incipientes sinais), sentiam que estavam a defender as suas terras, casas e famílias. Em Aljubarrota, combaterão encurralados – o que nenhum adversário deveria querer, segundo todos os tratadistas da guerra: não porque tivessem as costas contra um rio, um muro ou outro obstáculo que os impedisse de fugir, mas porque sabiam que, se perdessem, nada se interporia entre os castelhanos e Lisboa, e caída a capital, cairia a seguir o reino. Todos tinham essa consciência. Moralmente, o exército português estava em alta. Nos mais recentes recontros, cercos, batalhas, episódios navais, tinha saído sempre por cima. Perdera apenas Rui Pereira, que se sacrificara à frente da armada do Porto, atirando a sua nau contra os navios castelhanos para que as restantes naus e galés rompessem o bloqueio a Lisboa, perdera os capitães que escolheram o partido de Beatriz e Juan I em detrimento de uma “pátria” que não existia ou a lealdade a um rei cuja escolha fora controversa e sufragada por cortes irregulares do princípio ao fim.
Uns e outros, ao que iam?
Os castelhanos tinham investido muito no cerco a Lisboa, em 1384, com o desfecho trágico que vimos. Em 1385, Juan I pensou numa estratégia mais complexa, de ataques concêntricos lançados a partir de vários pontos, sem resultados que se vissem. Entre Abril, aguardando ainda contingentes que não tinham chegado, e a segunda semana de Julho, em que o grande exército entra em Portugal pelo “caminho das Beiras”, o objectivo estava definido: ataque à jugular – à capital do Reino, a Lisboa.
Com uma primeira paragem em Santarém, talvez a segunda cidade do país ao tempo (em concorrência directa com Évora) e segura pelos partidários de Dona Beatriz, seguir-se-ia um “passeio” até Lisboa, percorrendo as “terras das rainhas”, que há algum tempo se juntavam ao património com que a rainha de Portugal sustentava a sua casa: Alenquer, Óbidos e Torres Vedras por perto. Muito cedo chegaria a Lisboa e desta vez Juan I estaria preparado. A peste não poderia voltar a lutar do lado português. E a cidade, exangue do cerco anterior, não conseguiria oferecer uma resistência digna desse nome. Juan I estava bem informado. A estratégia era adequada.
Concentrados em Estremoz, Dom João I e o condestável Nuno Álvares Pereira deslocaram-se para a melhor posição do reino naquelas circunstâncias: Abrantes, controlando o Tejo, equidistante do mar e da fronteira com Castela. Tinham poucas opções: ou seguiam, a uma distância prudente, o exército castelhano, e chegados a Lisboa, logo se veria – era esta a posição de Dom João I; ou cortavam o passo aos castelhanos e, conscientes de que era uma daquelas decisões que os líderes evitavam a todo o custo até se encontrarem numa situação quase desesperada, davam batalha. Era essa a posição irredutível de Nuno Álvares e dos seus homens.
O centro de interpretação: a batalha estudada. A cerca de dez quilómetros de Aljubarrota, ergue-se, desde 2008, um dos mais interessantes centros interpretativos do país. Criado pela Fundação de Aljubarrota, com conteúdos resultantes das mais modernas investigações arqueológicas, antropológicas, militares e historiográficas, o CIBA oferece uma viagem interactiva aos eventos que conduziram à grande batalha de 1385. A estrela da exposição é um filme da Tejo Lda., com produção da Fundação Batalha de Aljubarrota, e conta com os actores Gonçalo Waddington (no papel de Nuno Álvares Pereira), Nuno Nunes (Dom João I), Ana Padrão (Leonor Teles) e Adriano Afonso (Fernão Lopes). Ao longo de 45 minutos, personagens essenciais da história portuguesa e castelhana do século XIV desfilam no ecrã e num livro interactivo, mostrando ao visitante as peripécias militares e as conspirações partidárias. A arquitectura do edifício ficou a cargo de Gonçalo Byrne e a visita ao CIBA pode ser articulada com uma visita à Capela de São Jorge (habitualmente encerrada) e ao local onde as equipas da Universidade de Coimbra estão actualmente a escavar.
O condestável era muito novo. Fora armado cavaleiro por Leonor Teles que, para o efeito, lhe oferecera uma pequena armadura de Dom Fernando enquanto jovem. Mas quem o visse nesse mês de Julho de 1385 diria estar perante um comandante militar experiente e corajoso – ou muito “ardido”, dizia-se ao tempo. Como muitos dos grandes génios militares, Nuno Álvares era pouco paciente e tinha centelhas de loucura. No conselho de guerra imediatamente antes da batalha de Aljubarrota, a intenção de Dom João I prevaleceu, mas o condestável não aceitou a derrota. No dia seguinte, acordou os seus homens muito cedo, assistiu à missa e foi ao encontro dos castelhanos. Muito contrariado, Dom João I percebeu que não tinha outra solução senão reunir-se a ele e travar batalha.
Assim perto de Leiria, aproximam-se e vão cruzar-se duas forças militares com objectivos distintos: os castelhanos (neste termo genérico, designa-se um exército em que abundavam portugueses, franceses e alguns gascões), que querem chegar depressa a Lisboa e conquistá-la, e que não têm interesse em se desgastarem em recontros pelo caminho. Se virem o exército português, contornam-no e seguem o seu caminho. Já este exército só quer interceptar o castelhano e enfrentá-lo numa batalha campal em regra. É importante não perder de vista esta diferença de objectivos.
Sucede que há pouco mais de 80 anos se vinham consolidando mudanças na “arte da guerra” ocidental. A impressionante cavalaria era invencível: uma carga de algumas centenas de cavaleiros com as lanças apontadas, bem seguras ao lado do corpo, cobertos de aço dos pés à cabeça, montados em cavalos fortes e resistentes, bem coordenados e começando a trote, encostados uns aos outros como uma muralha, para cair sobre os inimigos a galope. Uma carga dessas tinha um poder de choque incalculável, intimidava os mais valentes e, em princípio, levava tudo à sua frente, “rompendo”, era o termo, a vanguarda adversária. A história das primeiras cruzadas na Terra Santa está cheia de cargas assim. No fundo, era a tradução militar do férreo domínio social dos fidalgos e dos cavaleiros. Até ao dia...
Até ao dia em que, em Courtrai, no ano de 1302, uma força de infantaria flamenga, com um rio acorrer nas suas costas (e portanto, sem hipótese de retirar ou fugir), com as lanças fincadas no chão e apontadas ao adversário, mais algumas armas mortíferas usadas por peões, com o terreno à sua frente armadilhado, enfrentou de pé uma carga da arrogante cavalaria francesa e venceu. Doze anos depois, na célebre batalha de Banockburn, os escoceses receberam da mesma maneira a cavalaria inglesa e ganharam. A seu favor, introduziram um factor novo: os arqueiros, especialistas em disparar o long-bow (o arco longo galês): os projécteis não eram particularmente fortes, nem o alcance muito longo. Aumentava se os arcos fossem disparados para o ar. Mas depois de descreverem uma parábola, caíam a pique sobre os alvejados a uma velocidade que os tornava mortíferos. Estes arqueiros, bem treinados, conseguiam uma cadência de tiro quase inacreditável para nós hoje: João Gouveia Monteiro lembra que um bom arqueiro conseguia disparar a sua quarta flecha quando as três primeiras ainda voavam pelo ar.
O primeiro e decisivo factor desta nova forma de travar a guerra era a escolha do terreno, com rios, ribeiros ou outros obstáculos naturais, a proteger os flancos; depois, uma coesa vanguarda de infantaria, com boas protecções corporais e longas lanças ou piques arrimados ao chão e apontados ao peito dos cavalos inimigos; dos lados ou atrás, um corpo de arqueiros bem treinados e bem comandados, logo, bem sincronizados; por fim, o espaço livre em frente da infantaria, por onde desaguaria a torrente da carga dos cavaleiros, quase completamente semeado de armadilhas: longas cavas, covas-de-lobo, valas de água, paliçadas de troncos e ramos. A cavalaria podia não conseguir “romper” a vanguarda inimiga à primeira carga, e fazê-lo à segunda, terceira ou quarta. Mas era muito difícil isso suceder.
Com as valas e as armadilhas cobertas de homens e de montadas em agonia, retirar, reagrupar e voltar a atacar tornava-se impossível, até porque, falhada a primeira carga, os defensores redobravam de ânimo, faziam avançar as suas alas e os arqueiros e invertiam rapidamente o destino da batalha.
Quando chegamos a Aljubarrota, a cavalaria já não era o monstro que tinha sido. E os ingleses sabiam bem como fazer as coisas. Nuno Álvares não terá ficado à espera deles para aprender porque, como vimos, nos Atoleiros já combatera com os seus cavaleiros desmontados. E em Trancoso, a própria nobreza castelhana escolheu combater a pé (e perdeu).
Qual o verdadeiro golpe de génio táctico em Aljubarrota, pelo qual devemos sobretudo dar crédito ao condestável, embora os ingleses presentes tenham sem dúvida dado a sua contribuição – e todo o exército português em geral? Acompanhando hora a hora a deslocação dos castelhanos, numa linha serpenteante extensa (o pormenor vai ser importante), sabendo que estes não tinham interesse em lutar, mas sim em chegar o mais depressa possível a Lisboa, os portugueses tinham de criar uma armadilha credível: os invasores chegavam de nordeste. Dom João I aparecer-lhes-ia no caminho, ao cimo de um morro de peito aberto. Os castelhanos perderiam pouco tempo a observar os seus adversários, contornariam tranquilamente a elevação e seguiriam, imperturbáveis, para o seu objectivo: Lisboa. E foi exactamente isso o que se passou. Ao verem o movimento castelhano, os portugueses recuaram apressadamente e em desordem e, quando voltaram a dar a cara aos castelhanos, tudo mudara: estavam numa posição mais baixa e vulnerável, o oposto da que tinham escolhido. E aí os castelhanos, mais ou menos surpreendidos, e continuando sem dúvida a pensar em Lisboa, viram que tinham os portugueses onde os queriam e uma oportunidade única para aniquilar o exército real. Só que os portugueses sabiam mais: reconhecendo o terreno com o maior cuidado, escolheram um local elevado para provocar os castelhanos, aquilo a que se tem chamado a “1.R posição portuguesa”, e depois o sítio em que pretendiam verdadeiramente lutar: a “2.R posição”. Tinham de dar a impressão clara de que não estavam a contar que os castelhanos recusassem a batalha na primeira posição e que, ao verem Juan I ignorá-los e prosseguir a marcha, foram forçados a descer aos tropeções e a encolherem-se numa cota mais baixa, improvisada, o pior dos palcos para lutar contra um exército muito mais poderoso. E foi essa a impressão que deram.
Entretanto, passaram a noite a trabalhar, de pá e enxada, protegendo a “2.R posição”: centenas de covas-de-lobo troncocónicas, muitas com um espigão no meio, valas desencontradas, muitos obstáculos de troncos e ramos, desenhados para que a carga alargada da cavalaria se fosse estreitando até afunilar no contacto com a vanguarda portuguesa. Esta recebê-la-ia com as alas mais avançadas, alas essas formadas pelos arqueiros e lanceiros ingleses e pelos temíveis besteiros do conto portugueses, uma milícia concelhia com mais de cinco mil homens, bem treinados, cujas bestas disparavam virotões com uma mortífera capacidade de perfuração dos arneses e cotas de malha. Mais: o exército português tinha um ribeiro de cada lado, como protecção suplementar.
Mesmo assim, qualquer casa de apostas à época daria muito mais probabilidades de vitória ao exército castelhano, desde logo pela avassaladora superioridade numérica. Nessa “missão impossível” que é o cálculo do número de soldados numa batalha medieval, os números propostos por J. G. Monteiro parecem, até novas informações, sensatos e credíveis. Do lado português, e incluindo os ingleses, os combatentes andariam pelos 10.000; no princípio do século XV, o rei e o Conselho Régio estimaram que o reino podia, sem esforço exagerado, reunir dez a doze mil tropas, todos os contingentes somados (número notável, tendo em conta a dimensão geográfica e sobretudo demográfica do país). Mais duvidosa é a quantidade de adversários: tem-se aceitado um número cómodo, 30.000, mas que parece calculado por excesso.
A questão acaba por não ser importante: como já se disse, o exército castelhano deslocava-se numa coluna interminável. Seriam precisas muitas horas para se concentrar. Ora aquela mudança atabalhoada (ou assim parecia) da posição portuguesa ocorrera quase ao fim da tarde. Os castelhanos teriam pelo menos uma enorme vantagem: lutariam com o sol pelas costas. Mas tinham pouco tempo; não podiam ficar eternamente à espera do resto dos soldados. Prudente e debilitado, Juan I teria desaconselhado o combate (ou pelo menos foi o que explicou à cidade de Múrcia, na carta que lhe dirigiu a explicar a tragédia). Porém, numa atitude de alguma bravata, muitos dos seus comandantes, começando pela cavalaria francesa e por vários nobres portugueses, teriam respondido que era uma vergonha recusar aquele combate e que uma boa velha carga de cavalaria faria em estilhas aquele grupo miserável e mal armado que os olhava, encandeado pelo sol, numa posição indefensável.
Sabemos o resto: a carga de cavalaria desceu em fúria contra a vanguarda portuguesa, apenas para ser ceifada pelas covas-de-lobo, pelos obstáculos, pelas valas, para ir estreitando a frente até ao contacto com os portugueses. Apesar de o poder de choque estar muito diminuído, ainda conseguiu entrar pelas defesas portuguesas, mantendo o resultado da batalha em aberto. O socorro da retaguarda portuguesa, comandada pelo rei Dom João I (que se viu desmontado e em perigo de vida) e a intervenção decidida das aulas e dos arqueiros fecharam muitos dos cavaleiros que tinham conseguido “romper” num abraço mortal. Centenas de cavaleiros franceses, feitos prisioneiros, foram executados no local: não havia possibilidade para “preitesias” ou futuras negociações de resgate.
O crepúsculo da cavalaria?
Passemos ao lado de pequenos episódios e escaramuças dentro da batalha: depois destes primeiros desenvolvimentos, depressa se percebeu que os ventos da fortuna tinham mudado. Entre os “davides” gritou-se “Já fogem!” e os “golias” levaram o brado a sério e fugiram mesmo, numa debandada sem controlo. Centenas ou milhares de castelhanos seriam mortos por populares nos campos à volta de São Jorge quando se tentavam salvar.
As baixas portuguesas foram reduzidíssimas, as castelhanas brutais, como de resto aconteceu com alguma frequência em combates com esta morfologia. Juan I, Beatriz e os demais sobreviventes retiraram para Castela assim que possível. A nova dinastia de Avis, mal fundada nas Cortes de Coimbra de Abril de 1385, ganhava uma legitimidade europeia no campo de São Jorge, embora vertendo sangue cristão, estigma que Dom João I nunca esqueceria. Nuno Álvares Pereira daria o golpe de misericórdia nas ténues esperanças castelhanas, ao invadir Castela perto de Valverde, naquilo que parecia uma aventura irresponsável condenada ao desastre, mas que hoje, de acordo com um trabalho recente, nos aparece como uma iniciativa militar bem pensada e executada para acabar com os últimos comandantes e contingentes militares castelhanos capazes de constituírem uma ameaça para a independência de Portugal. Juan I faleceria pouco depois.
Não sabemos se alguns castelhanos perceberam a posteriori o que lhes tinha acontecido. Mas a história da batalha real no campo de São Jorge poderia bem ser plasmada num manual de como vencer uma batalha campal em circunstâncias à partida desfavoráveis. Não se perca por isso uma visita a Aljubarrota, ao magnífico Centro Interpretativo e aos restos das sucessivas campanhas arqueológicas, que a indesculpável abertura do leito da Estrada Nacional 1 não destruiu.
Um projecto notável: as cores da Capela do Fundador. A Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, surge agora com múltiplas cores no ecrã, contrastando com a visão da pedra desnudada. Um dos resultados finais do projecto de estudo da cor neste monumento, Policromia Monumental, é um modelo tridimensional de toda a sala, mostrando o papel que a cor desempenhou originalmente. A equipa do Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, em parceria com a spin-off THEIA, realizou um levantamento 3D recorrendo, em simultâneo, a um varrimento laser e captura fotogramétrica, feita a partir de cerca de 800 fotografias. A combinação das duas técnicas resultou num modelo com 400 milhões de polígonos. A reconstituição das pinturas em formato virtual, o grande objectivo do trabalho, ocupou uma equipa de quatro técnicos e foi feita através de vários programas informáticos de pintura, utilizando técnicas que se traduzem num grau de realismo superior aos métodos tradicionais. Por fim, os diversos modelos foram agrupados num software de motor de jogo, o que agilizou o método de processamento da informação. Foram produzidos diversos vídeos e imagens que permitem visualizar agora, centenas de anos depois, quão coloridos terão sido a capela e o túmulo de Dom João I.