Em 25 de Março de 2007 teve lugar a finalíssima do concurso da RTP Os Grandes Portugueses. Era uma data importante para a estação pública de televisão, que fazia meio século. Para a comemoração, que coincidia com o final do programa, estava previsto um banquete. A mesa estava posta nos estúdios e era farta… até que se soube o resultado do concurso. Então, apagaram-se os holofotes, desceu sobre a festa uma cortina de incrédulo desconcerto, mergulhando-a como que numa longa noite de clandestinidade, e o banquete para ali ficou, suponho que intocado.
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Os finalistas do concurso incluíam reis, como o fundador D. Afonso Henriques ou D. João II, o Príncipe Perfeito, Nun’Álvares Pereira, o Condestável, figuras de proa da expansão marítima, como o Infante D. Henrique e Vasco da Gama, grandes poetas, como Luís de Camões e Fernando Pessoa, e estadistas controversos, como o marquês de Pombal.
Mas apesar do peso histórico de todos esses grandes portugueses, os primeiros três entre os dez que ficaram das sucessivas eliminatórias eram todos do século XX e todos “políticos”: Salazar, da direita nacional, conservadora e autoritária, Álvaro Cunhal, da esquerda comunista, internacionalista e totalitária e Aristides Sousa Mendes, um centrista, celebrado pela sua acção humanitária, ao facilitar, no consulado de Portugal em Bordéus, passaportes portugueses para judeus perseguidos.
Ganhou Salazar, com 41% dos votos, seguido por Álvaro Cunhal, com 19,1%, e Aristides Sousa Mendes, com 13%. Sousa Mendes era defendido pelo José Miguel Júdice, Cunhal pela deputada Odete Santos, e Salazar por Jaime Nogueira Pinto.
Diga-se que, na altura, mais ainda do que agora, não havia quem quisesse dar-se ao trabalho de defender Salazar fora do aconchego do lar ou de um táxi – onde geralmente se optava pela modalidade “um Salazar em cada esquina”, então em voga (o Salazar em três pessoas distintas, dois para se contradizerem e um para desempatar, ainda não tinha cá chegado). Por isso, quando o convidaram, Jaime Nogueira Pinto perguntou se esperavam que o defendesse como advogado ou como historiador. Disseram-me que devia defender Salazar como advogado, ou seja, podendo valorizar os aspectos positivos do meu “cliente” e justificar, sem os omitir, os negativos.
A vitória do “ditador,” do “fascista” António de Oliveira Salazar[*] – um candidato só admitido a concurso à última hora e por força dos protestos contra a sua ausência da lista dos elegíveis – deveu-se a um fenómeno muito português de reacção ao silenciamento e à manipulação ideológica, que encontrava no concurso uma brecha para se expressar. Não era, evidentemente, uma apreciação serena da História de Portugal, em que o Fundador e o Condestável, por exemplo, essenciais à independência do país, ou o Infante D. Henrique, D. João II e Vasco da Gama, figuras-chave da expansão que deu massa crítica ao Reino para escapar à atracção centralista de Castela-Espanha, assumiriam maior importância.
O que estava em jogo era um jogo. E o jogo era político. Talvez por isso, tal como na América, em França e em Inglaterra (onde ganharam Reagan, De Gaule e Churchill), aqui as personagens do século XX dominaram. E houve também um alinhamento ideológico à volta de dois “extremos” que, nalgumas coisas, se tocavam – Salazar e Cunhal eram dois homens inteligentes, convictos e coerentes nas suas convicções, muito diferentes entre si, mas também muito diferentes, para o bem e para o mal, dos “moderados”, dos “rolhas”, dos pequenos, grandes e médios corruptores activos ou passivos que muita gente via e vê no grosso da classe política.
Essa vitória de Salazar, do “fascismo”, ainda que só num concurso, foi talvez o primeiro balde de água fria que inesperadamente caiu sobre os “fazedores de opinião”, uma premonitória surpresa desagradável, que receberam com a incredulidade ofendida de quem está perante uma vil traição.
Ao contrário dos “fazedores de opinião”, cuja opinião contribuíra para manipular com grande sucesso o Dr. Cunhal, quando usava para os seus fins e para os da União Soviética o ardil do “nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, sabia bem que aquela sua via rápida de Auschwitz à António Maria Cardoso não passava de um ardil. E que não eram minimamente comparáveis, até em número relativo de presos políticos, a repressão do Estado Novo e o holocausto hitlerista; e muito menos os desmandos e sevícias do Estado Novo e as carnificinas comunistas do maoismo e do sovietismo. Respeito quem é coerente e se bate pelos seus ideais até à prisão e à morte, mas os “excessos” do Estado Novo e do hitlerismo ou do comunismo soviético e chinês não são nem podem ser realidades comparáveis. Jaime Nogueira Pinto tentou explicá-lo quando defendeu Salazar. E não tendo sido salazarista no tempo de Salazar, tendo combatido o marcelismo e tendo vivido toda a minha vida consciente na oposição, antes e depois do 25 de Abril, achou que podia fazê-lo com independência e à vontade.
Mas em Portugal, onde o golpe militar de Abril, o PREC e o domínio dos instrumentos culturais e mediáticos pela Esquerda condicionaram a percepção da História do século XX, estipulou-se que o lugar de Salazar era na galeria dos horrores; e para que os figurantes da galeria continuem a desempenhar o conveniente papel de espantalhos ou papões que a Esquerda lhes atribuiu, carrega-se-lhes nas cores até à caricatura e enxota-se toda a vontade de distância crítica, de análise, de verdade, com esperança de que o povo ignore as tristezas do presente e vá atrás.
Entretanto, quando alguém, por provocação e porque sabe para quem fala, se mostra subitamente imune ao Salazar’s Derangement Syndrome (SDS) – um reflexo local do famoso Trump’s Derangement Syndrome (TDS), que alastra pela Euro-América e acomete o entendimento e a capacidade de análise e de relativização –, rasgam-se vestes, fazem-se exaltadas referências à inconstitucionalidade das “apologias do fascismo”, esconjura-se a suposta beatificação de uma qualquer trindade salazarista, evoca-se Hitler…
É, infelizmente, o que tem vindo a acontecer a muitos dos que, atingidos cumulativamente pelo SDS e pelo TDS, têm a nobre missão de nos informar: à menção do nome-gatilho, vai-se-lhes abaixo o entendimento e entram em falência interna e externa, ignorando supostas objectividades e amalgamando atabalhoadamente passado, presente e futuro, muitas vezes sem que se deem conta.
Nesse Domingo de Março de 2007, quando ainda não havia Trump e Salazar era um só, o choque era mais compreensível.
Tanto que, quando Odete Santos, desolada perante a “vitória do fascismo”, invocou o anti-fascismo da Constituição, tive de ser eu a acalmá-la, dizendo-lhe que o regime não tinha caído, que era apenas um concurso.
[*] Os que chamam a Salazar “fascista” só me lembram os que chamavam “comuna” ao Dr. Soares
