sábado, 22 de janeiro de 2022

os bufos

Há quem só veja nestes episódios recentes o zelo de impor o cumprimento rigoroso das regras sanitárias. 
Para nós mais velhos e com memória, voltaram os informadores: Serão os filhos ou os netos dos “bufos” da PIDE/DGS revertidos em informadores da PSP/DGS para em breve passarem a avençados de uma qualquer PVDE… 
Seis amigos estão a ver pela televisão um jogo de futebol em casa de um deles quando, subitamente, alguém lhes bate à porta — era a polícia, que veio dispersar o grupo, alertada para uma “festa ilegal” por um dos vizinhos. Um professor universitário dá aula com transmissão online, numa sala-de-aula ampla e a grande distância dos poucos alunos presentes, tirando por momentos a máscara — e, passado algum tempo, a polícia interrompe a aula para o multar, tendo esta sido alertada do gesto por denúncia anónima. Três jovens encontram-se para conversar e beber uma cerveja, depois de jantar, numa praceta lisboeta — e rapidamente aparece a polícia para os dali expulsar, após queixa de um transeunte que os avistou. [...] 
Mas entrelinhas de cada episódio emerge um padrão muitíssimo mais inquietante: a emergência da delação, a proliferação de denúncias anónimas, a instauração da vigilância social e o enfraquecimento da comunidade por via da desconfiança partilhada entre concidadãos. (in “ Os Bufos“ por Alexandre Homem Cristo) 
A proliferação de delatores e bufos assinala uma ameaça latente à nossa vida democrática. 
Primeiro, lembra-nos que o tecido social com que se cose uma sociedade democrática é muito mais frágil do que gostaríamos de imaginar. [...] 
Segundo, recorda-nos como damos por certo um amor à liberdade que demasiadas vezes não existe [e onde] a lógica dominante é simples e nada tem de liberal: a minha vida ninguém controla, mesmo que eu controle a vida dos outros. [...] 
Terceira, a proliferação de bufos deve alertar as instituições democráticas para o seu dever de resistência a todas as formas de violação da liberdade. 
[...] é forçoso criticar, por exemplo, a Universidade de Lisboa, que optou por não se pronunciar após um incidente em que teve a polícia a entrar numa faculdade, interromper uma aula e multar um professor. Num caso tão grave quanto este, o silêncio institucional legitima que um espaço privilegiado de liberdade fique sujeito a controlo social e a denúncias anónimas — algo que, escusado será recordar, traz más memórias.
(publicado no Observador em 22 de Outubro de 2020)