sexta-feira, 16 de março de 2007

Sampaio arriscou ficar com "cara de parvo"


A dissolução do Parlamento é um "poder exercido em dueto" entre o Presidente da República (PR) e o eleitorado, entende Jorge Sampaio. E se, em vez de estarem em sintonia, a votação confirmar a mesma maioria política de deputados na Assembleia da República (AR), então o Chefe do Estado "fica com cara de parvo, com vontade de se meter debaixo da mesa".

Na primeira das três aulas que vai ministrar na disciplina de Sistemas Políticos na Universidade Nova de Lisboa, o ex-presidente não só avançou, ontem, com este conceito de poder em dueto - da autoria de Jorge Novais, o professor de Direito Constitucional que foi seu consultor em Belém - como lembraria a angústia com que esperou até às 20.00 do dia 20 de Fevereiro de 2005 para saber os resultados.

Caso o veredicto popular tivesse sido distinto da análise que fizera da situação, admite que o resto do mandato teria sido completamente diferente. Mas os portugueses não reconfirmaram a maioria parlamentar ao PSD e CDS, que sustentava o Governo de Santana Lopes, antes optaram por dar uma maioria absoluta ao PS de Sócrates.

Apesar de ir abordar os poderes presidenciais "de grande impacto" só na última das lições, a dissolução serviu a Sampaio para ir explicando o figurino constitucional do nosso semipresidencialismo, esse conceito, popularizado por Maurice Durverger, que significa um modelo híbrido entre o presidencialismo e o parlamentarismo puros - e que autores como Gomes Canotilho e Vital Moreira designam por "sistema misto parlamentar-presidencial" ou "sistema misto com dominante parlamentar".

Voltando a centrar a sua intervenção no ano turbulento de 2004, quando se pedia a dissolução em Junho e se criticou a mesma decisão em Novembro, Jorge Sampaio estranhou que ninguém se lembrasse já da revisão constitucional de 1982. Desde essa altura, "não há responsabilidade política do Governo perante o PR"; enquanto "a dissolução da AR" é uma livre competência do Chefe do Estado.

E, para dar aos alunos de Ciência Política e Relações Internacionais uma nota pessoal, revelava que, consultando os seus arquivos, descobrira a declaração de voto que fizera na AR, contestando aquela diminuição de um poder presidencial - apesar de ter votado a favor, "por disciplina partidária".

De resto, lembrava que em 30 anos de Constituição, além do "movimento pendular entre a moda presidencialista e a moda decorativista" (o PR como uma "espécie de Rainha de Inglaterra ou notário do regime"), apenas houve três dissoluções - uma com Eanes, outra com Soares, a última com Sampaio. E não pode ser porque o PR "acorda maldisposto, há muitas nuvens no céu, que chega a Belém e resolve dissolver", ironizava.

Ao desenvolver o sumário da primeira aula, contrariava ainda três ideias correntes entre os analistas políticos: não subscreve a teoria de que a prática presidencial seja diferente do primeiro para o segundo mandato; contesta a ideia de coabitação entre Belém e S. Bento; rejeita a tese de que o sistema eleitoral português está esgotado.

No primeiro caso, as "muito controversas" leituras em que se dá conta que o PR tem mais cuidado no primeiro mandato porque quer ser reeleito baseiam-se, em seu entender, numa atitude quantitativa ("comparam-se números de vetos ou de mensagens"), em vez de atenderem "à diversidade dos factos" concretos em apreciação.

Depois, como a maioria presidencial se esgota no dia da votação e o vencedor assume um papel de árbitro "superpartes" - ao contrário do que sucede, por exemplo, em França -, mesmo se a família política que o elegeu é diferente da que sustenta o Governo, não faz sentido falar de "coabitação".

Por último, e quando se começa a falar em mudanças das leis eleitorais, Sampaio sustenta que o sistema não está esgotado, pois tem permitido todas as soluções governativas: maiorias absolutas, maiorias relativas, coligações. O que pode haver, acrescenta com a convicção de quem está agora a viver "uma reforma política divertida", é "esgotamento dos actores políticos".

E, apesar de não ter tido tempo de abordar os "recados ao Governo", lembrava que extrairia exemplos e princípios das conversas de quinta-feira com o primeiro-ministro, mas sem nunca revelar o teor desses diálogos. "O sistema só funciona com lealdade institucional entre órgãos de soberania", pelo que jamais responderá a qualquer versão sobre essas conversas - numa alusão a Santana, inserida no raciocínio acerca da necessidade de haver uma "deontologia política".
DN Sexta, 16 de Março de 2007 Fernando Madaíl e Pedro Saraiva (imagem)