sábado, 20 de fevereiro de 2010

PS: em busca da honra perdida


Ao longo das últimas semanas, tenho resistido à tentação de regressar à memória do meu percurso como deputado e (também) militante do PS entre 2002 e 2004. A razão dessa resistência é simples: não queria confundir uma experiência pessoal, marcada pelas circunstâncias do tempo e pela subjectividade das minhas expectativas, com as actuais perturbações internas do PS (na sequência das suspeitas de interferência do chefe do partido e do Governo no controlo de meios de comunicação social, reveladas nas últimas edições do SOL).
Dei-me conta, porém, que as opiniões que tenho publicado sobre o assunto não são de todo alheias a essa minha experiência. Por outras palavras: não posso fingir que aquilo que agora se vai tornando público é uma surpresa absoluta para mim, muito embora me confesse ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos.
Deixei de ser militante do PS no Outono de 2004 e já anunciara ao então líder parlamentar, António José Seguro, o meu propósito de renunciar ao cargo de deputado, quando o Presidente Sampaio decidiu dissolver o Parlamento em Novembro desse ano. Antes disso, não concordara com a demissão de Ferro Rodrigues de secretário-geral do PS depois de Sampaio ter aceite a substituição de Durão Barroso por Santana Lopes como chefe do Governo e recusado, na altura, a antecipação das eleições. Mas, entretanto, já assistira ao frenesim conspirativo de José Sócrates e dos seus fiéis para preparar a sucessão de Ferro (na eventualidade de António Vitorino não se candidatar à liderança, o que viria a confirmar-se).
O caso Casa Pia tinha abalado profundamente o PS e chegou a pôr em causa a honorabilidade de Ferro Rodrigues e outros dirigentes socialistas, com base em testemunhos que nunca se confirmaram. Partilhei – e exprimi publicamente – a indignação que se vivia dentro do partido, mas pronunciei-me contra a tentação censória como forma de prevenir a histeria inquisitorial e irresponsável de alguns media.
Numa reunião entre o grupo parlamentar e a direcção do PS, na sede do Largo do Rato, argumentei, em abono dessa posição: «Sabe-se como começa a censura, mas não se sabe como acaba». Ferro, apesar de visado pessoalmente na campanha difamatória, concordou comigo, mas, logo que terminei a minha intervenção, um deputado saltou da cadeira de dedo em riste e advertiu--me severamente: «Não concordo nada com aquilo que você disse!». Era José Sócrates.
Retorqui que era a opinião dele, não a minha, e propus debatermos o assunto. Passámos longas horas a discutir pela noite dentro, num bar de Lisboa, esgrimindo as nossas razões, mas sem ser possível chegarmos a um acordo. Creio que foi aí que percebi definitivamente que o instinto autoritário de Sócrates e a sua desconfiança visceral em relação aos jornalistas – com excepção dos jornalistas alinhados e ‘amigos’– eram traços essenciais da sua personalidade.
Mal tinha eu arribado a São Bento, José Sócrates foi, entre os meus colegas de bancada, daqueles que manifestaram maior cordialidade e simpatia para comigo. Durante um período inicial, não fui insensível a essas atenções, presumindo que Sócrates estaria suficientemente informado sobre as minhas ‘idiossincrasias’ pouco ortodoxas ou domesticáveis e que não haveria nenhum comércio espúrio em perspectiva. Relacionava-me, aliás, de forma excelente com outras pessoas do círculo próximo de Sócrates, como Pedro Silva Pereira.
Mas, à medida que o tempo foi passando, os equívocos que pudessem existir sobre a minha hipotética adesão a esse círculo de incondicionais socráticos dissiparam-se por completo. E é hoje claro para mim que foi a iminência de Sócrates suceder a Ferro Rodrigues como líder socialista (eu cheguei a apostar em António Costa que, no entanto, rejeitava liminarmente essa hipótese) o pretexto final para encerrar uma experiência política que, certamente por imperdoável ingenuidade minha, eu encetara com genuína convicção, mas se viria a revelar verdadeiramente frustrante.
Sempre me senti socialista (ou, se quiserem, social-democrata à maneira nórdica), apesar do meu esquerdismo libertário juvenil. Foi, de resto, esse grão de irreverência anarquista que nunca consegui extirpar – talvez por uma vocação natural de rebeldia – o motivo maior da minha aversão às amarras do partidarismo ou do seguidismo tribal. Mas isso não impede que me reconheça na grande nebulosa da esquerda democrática. É essa a minha família política.
Embora tenha arriscado fazer uma parte do meu caminho político como militante e deputado do partido de que me sentia mais próximo – recordo, por exemplo, a alegria e o entusiasmo com que participei na campanha eleitoral de 2002 em Lisboa – nunca mantive grandes ilusões sobre as pequenas misérias e mentiras da vida partidária ou qualquer suposta ‘superioridade moral’ do PS.

Não atribuo exclusivamente a Sócrates a descaracterização daquilo que, em termos românticos, poderíamos chamar a ‘alma socialista’. Muito antes dele, o PS já passara por outras peripécias nada românticas ou edificantes. Mas também é verdade que nunca, como agora, vi essa alma tão perdida, penada e desonrada pelo carreirismo, pela vileza e pela falta de carácter (alguns mostram horror a que se fale disso, como se o carácter não fosse a essência da nobreza política).
Onde estão as vozes inconformadas que não se fazem ouvir ou se escondem cobardemente atrás do reposteiro das conveniências, pactuando com a mentira, o cinismo, os negócios escuros e a promiscuidade dos interesses?
Como é possível que aquilo que se mete pelos olhos dentro como punhais possa ser negado e mistificado em nome de embustes e hipocrisias formais? Como poderá a fidelidade servil ao chefe ser colocada acima dos ideais, princípios e convicções que inspiram a verdadeira fidelidade moral e política? Perdida a honra, que restará ao PS?
por
vicentejorgesilva