Na manhã de 11 de Março de 1975 recebi ordens superiores para me deslocar com uma equipa de operadores de imagem e de som para o Regimento de Artilharia Nº 1 (RAL 1), Sacavém, às portas de Lisboa. O chefe de redacção José Manuel Marques disse-me que "parece-me que há para lá sarilhos dos grandes. Tem cuidado contigo. Nada de heroísmos".Partimos para a minha unidade militar porque o RAL 1 foi o quartel onde eu passei à disponibilidade do Exército como artilheiro. Um quartel que conhecia como as minhas mãos. E conhecia também o "manda-chuva" que na altura comandava os militares revolucionários que se opunham aos spinolistas. Anos antes, o capitão Dinis de Almeida cruzara-se comigo na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas.Quando chegámos ao local, o operador de imagem chamou-me a atenção que o ambiente era grave. Aviões sobrevoavam o quartel, um morteiro tinha sido disparado e atingiu uma das camaratas. Um soldado morreu. Filmámos o sangue junto à sua cama. Viemos para o portão do quartel e Dinis de Almeida estava desvairado. Tudo poderia acontecer. As chaimites foram estacionadas na parada e muitos civis tentaram entrar no quartel para recolherem armas. O "inimigo" eram os pára-quedistas que se encontravam a umas centenas de metros posicionados de forma a poder atacar quando recebessem ordens possivelmente enquadradas em mais disparos aéreos.Com o passar do tempo, iniciaram-se negociações entre as partes, mas sempre com os gritos das vozes revolucionárias pelo meio a ouvirem-se continuamente e com Dinis de Almeida sem saber bem o que decidir.O operador de imagem volta a dizer-me: "Puto Jones, isto está muito quente! Muito perigoso! Temos de estar preparados para levar com algum balázio em cima". Na força dos meus 25 anos e com o entusiasmo da "revolução" nem sequer me lembrei dos dois bebés que tinha em casa, um já nascido e o outro que viria ao mundo no Maio seguinte.A reportagem foi realizada pela nossa equipa da RTP em plenitude, com esforço, dedicação, inteligência, experiência militar e coragem. A equipa durante todo o dia não tinha ingerido qualquer alimento e telemóveis não existiam. Cerca das 17.00 horas, chegou uma outra equipa de reportagem chefiada por Adelino Gomes, para que a nossa pudesse regressar à Alameda das Linhas de Torres e para que o material recolhido fosse sendo montado para posterior transmissão no telejornal.Cheguei à redacção e o director Álvaro Guerra passou a ter conhecimento de todo o material exclusivo que eu possuía. Um manancial de gritos, de correrias, de apelos à guerra, à luta, à morte. Conversas acesas entre militares. Políticos e militantes de forças de extrema-esquerda à porta do RAL 1. Pára-quedistas quase na boca do lobo, enfim, um vasto espólio histórico que haveria de deixar marca. Em quem? Em mim.Quando me apercebi do que se passava na redacção já era tarde para agir. Adelino Gomes que tinha regressado à base com umas meras imagens de aviões a sobrevoarem o quartel RAL 1, dirigiu-se à sala de montagem com indicações de Álvaro Guerra, a fim de juntar todo o material e apresentar uma peça global. Com o meu trabalho, Adelino Gomes passava a ser o jornalista-herói. Desde esse dia, nunca mais parou na ribalta. Desde esse dia que eu compreendi que o jornalismo também é uma máfia.© jes Jornal do Pau Para Toda A Obra